por Zé da Silva

Capricórnio

A câmara de torturas ficava em cima da padaria. O dentista do bairro pobre da cidade feia. Ele foi lá porque tinha panelas em dentes importantes na arcada inferior, parte não visível nos sorrisos que não dava. O boticão entrou em ação. Antes, seringa e agulha que lembravam Tina Turner cantando Acid Queen em Tommy, a ópera do The Who. A falha ficou lá. O adolescente aceitou-a como parte integrante da vida. E esqueceu, mesmo porque, se ele não olhava, quem iria? Anos depois, quando começou a moda da ortodentia, alguém lhe sugeriu consertar o resto dos dentes, tortos, porque o espaço conseguido em cima da padaria entortaram o que já era torto. Ele deu de ombros. Tinha conseguido avançar na saúde bucal: anos e anos sem cáries. Pensou que tinha sido aquele primeiro grande trauma o causador de tal comportamento saudável. Aí chegaram os implantes, caros, mas, com a proliferação, poderia pagar até com o cartão de crédito em vezes. Pensou, pensou, pensa… Está bem de vida, mas, para que acabar com aquele monumento que lhe remete a lembranças da vila, da vida, da pobreza? Resolveu então pedir ao atual dentista uma foto do espaço. Para olhar. Aquilo é ele. Uma falha que deu certo.