6:31Um dia para esquecer?

por Thea Tavares

A Lilica é uma adorável menina de cinco aninhos e que é meio-irmã de uma adolescente curitibana. Nunca colocou os pés em Curitiba, mas tem verdadeira paixão por tudo o que se refere à cidade, só justificada pela profunda admiração que tem pela irmã mais velha. Tanto que, mesmo tendo nascido em uma capital européia, ninguém lhe tira da cabeça que ela não seja natural daqui. “Eu escolho onde quero nascer!”, diz ela, desarmando as tentativas infrutíferas dos que se embrenham pela vereda de demovê-la dessa ideia, seja para corrigir a nacionalidade, seja pela naturalidade equivocada. Mas a Lilica não arreda o pé.

Graças ao “Google Earth”, ela conhece direitinho os pontos históricos, turísticos e comerciais da capital do Paraná. Há pouco tempo, teve outra grata surpresa. Por conta do fanatismo familiar pelo futebol, a Lilica descobriu pela TV, meio que sem querer, que havia um time de quase homônimo da sua amada Curitiba, o Coxa. Pra quê? Bastou uma fração de segundo para assimilar a informação e a pequena Lilica tascou de imediato, pra desespero do pai, que é palmeirense, e da mãe, colorada: “Eu vou torcer pra esse!” Tentaram de tudo a fim de convencer a menina a mudar de opinião, mas não teve jeito. Nem a alegação de que as cores do uniforme são as mesmas do ‘Palestra’ fizeram a Lilica torcer pro time do papai. E pontos para a irmã, que nem é simpática ao Coritiba, mas sabe bem de onde nasce aquela idolatria. Fazer o quê? A pequena curitibana por adoção já havia se determinado a ser coxa-branca. De uniforme e tudo.

Ontem, a Lilica assistiu horrorizada as imagens da ‘sua’ torcida destruindo o estádio de futebol, trucidando gente e atropelando tudo o que vinha pela frente, fossem bens materiais, fossem pessoas. A sequência de gerúndios na frase anterior serve para reforçar e reter o impacto do pânico daqueles momentos vividos pela pequena torcedora. Lilica viu, a milhares de quilômetros daqui, a pior face do que deveria ser uma oportunidade de confraternização ou mesmo para propiciar uma disputa saudável e a troca de provocações entre amigos amantes do esporte. Ou de tudo o que fizesse a paixão pelo futebol merecer um espaço digno no convívio social.

Seria fácil trabalhar na cabecinha da Lilica uma forma de digerir a derrota e o rebaixamento do time que, para ela, personifica sua tão amada cidade de Curitiba. Pode-se dizer mesmo que seria um válido processo educativo. Agora, apagar a lembrança dos horrores que a doce e determinada criança viu pela TV será, sim, uma tarefa árdua. Os episódios de ontem mancharam a imagem que os seus sonhos infantis construíram em torno da cidade, do esporte, da torcida e sabe-as lá mais quais outros efeitos virão dessa agressão.

A estupidez e a irresponsabilidade daqueles que não merecem ser chamados de torcedores ou de quem, de alguma forma, contribuiu para que as condições da partida de ontem favorecessem os atos criminosos que todos vimos, vão deixar inúmeros prejuízos, traumas e sequelas. Diante das famílias que estão neste momento de plantão em hospitais , o problema da Lilica parece menor e o é certamente. Mas não deixa de ser uma perda de um pedaço da vida, do mundo e dos valores que desejamos cultivar para os nossos filhos. Configura-se numa vitória da imbecilidade social. Retrata a complexidade da nossa sociedade da barbárie, em que até os escapismos, como a paixão pelo futebol, descambam para a selvageria e nos remetem à dura e crua realidade da violência cotidiana. Não se trata de simplesmente passar uma borracha no dia de ontem, mas de responder com atitudes à pergunta: por quanto tempo mais perderemos essa guerra?

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