6:31Nhô Nhô Francis, Operário Padrão

por Lucas Mendes, para a BBC Brasil

Francis morreu há 12 anos, na quarta, 4 de fevereiro. O documentário Caro Francis, de Nelson Hoineff, nos conta a história dele com vários depoimentos, muitos a favor.

Foi um parto demorado e difícil. Grana. Pouco depois da morte, Nelson esteve aqui e tomamos um café da manhã juntos, rimos com as histórias e sugeri um roteiro. O resultado é diferente e melhor do que o meu. Minha versão, em 98, foi limitada à participação do Francis no nosso programa e foi ao ar um ano depois da morte no GNT.

Senti falta de depoimentos críticos e de outros que seriam a favor, como o do Luis Fernando Mercadante, que na década de 70 era correspondente da Veja em Nova York e babá do Francis antes do casamento com a jornalista Sonia Nolasco.

Não sei onde anda o Mercadante, que tinha pose e apelido de príncipe.

Grande, fino e bonito. Foi um dos arquitetos da entrada no Francis na Globo – já estava de volta ao Rio no fim da década de 70 – mas em Nova York era companheiro de noitadas que terminavam no apartamento do Francis, no Village, com o Empire Estate ao norte e Wagner a todo vapor.

Senti falta do depoimento do Caio Blinder que, aos 22 ou 23 anos, foi promovido a editor assistente de Internacional da Folha de São Paulo e dois dias depois ligou para o Francis, num sábado, para pedir que cobrisse um protesto no Central Park ou na ONU, Caio não se lembra.

“Já cobri”, respondeu o Francis e desligou o telefone.

O alemão não trabalhava aos sábados. No resto da semana escrevia até mais do que o necessário. Aos domingos,, costumava mandar uma trolha que não tinha sido pedida por ninguém e o espaço da editoria internacional na segunda-feira era reduzido, mas, se era Francis, tinha de ser publicado na íntegra por mais bizantina que fosse a matéria.

O Francis lia alguma coisa nos jornais americanos que nem estava no radar da imprensa brasileira e mandava ver no teletipo. Era um dos poucos, senão o único correspondente brasileiro com o luxo de um teletipo em casa. Depois da trolha iam as correções: na linha oito, em vez de Stalin é Krushev, etc….

No nosso tempo da TV Globo, na década de 80, ele chegava entre onze e meio dia, nunca faltava , e a entrada dele na redação era festiva: “Viva o Nhô Nhô!”.

Era o apelido dele, dono da Casa Grande. Às vezes, colocava a voz em falseto e dizia , como se fosse o presidente, ou senhor da senzala: “Quer terra? O Nhô Nhô vai dar terra! Quer casa? Nhô Nhô dah casa! Que carro? Etc…”

Sentava na mesa, punha a mão na testa e dizia: “Ai meu Deus, pobre de nós…o Brasil está f***!”

Um editor um dia disse a ele: “Seu cabelo está verde”.

“Verde é seu rabo!” ele respondeu, mas usou uma palavra mais crua. O Carlinhos, cabelereiro, ou a Sonia, cuidavam do cabelo dele. Quando fazia por conta, a cor era imprevisível.

“Atenção! Silêncio! Nhô Nhô vai gravar” avisava o cinegrafista. Às vezes saía num tiro de 45 segundos, às vezes saía no terceiro ou quarto tiro, e quando errava fazia um discurso contra esta “merda da televisão”.

Se a culpa era da secretária portuguesa que esquecia de cancelar as chamadas para a redação, ele pedia a cabeça “desta filha da p***. Só matando esta portuguesa”, que era educadíssima, mas meio pateta.

Nhô Nhô era mesmo meio Nhô Nhô. Emprestava dinheiro para quem pedisse e seguia a fórmula: não havia cobrança, perdão nem esquecimento. O devedor estipulava quando ia pagar. Não podia pagar picado nem mudar a data e jamais era cobrado. Afinal quem devia o favor devia se lembrar dele. Se não pagava, Nhô Nhô se sentia aliviado porque sabia que levaria outra facada.

De um começo pobre e difícil na década de setenta, Francis estava rico no fim da década de noventa. Ganhava tanto ou mais do que diretores e editores dos jornais brasileiros e até americanos. Talvez fosse o jornalista mais bem pago do Brasil. Mandava dinheiro para parentes e começou a gastar com viagens executivas para a Europa.
Sonia Nolasco ficou desapontada comigo, porque no documentário eu digo que o Francis não gostava de gastar dinheiro com médicos nem advogados e ia ao médico dele em Nova York porque não pagava e não precisava marcar consulta. Era tratado como celebridade. O Francis era a única pessoa que eu conhecia sem seguro de saúde, que naquela época era barato. Um dos mistérios do Nhô Nhô.

Eu e ninguém que eu conheça sabe explicar a guinada radical dele da esquerda para a direita, dos ídolos Noam Chomsky e I. F. Stone para Ronald Reagan. Imagino o alemão com o Obama na Casa Branca. Acho que ele diria: “Nhô Nhô quer casa? Nhô Nhô vai dar casa. Quer terra? Nhô Nhô….”

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2 ideias sobre “Nhô Nhô Francis, Operário Padrão

  1. Pé Vermelho

    Inesquecível, inconfundível, inimitável. Aqueles óculos (ou seriam microscópios?); aquela voz; aquela inteligência, mais sagacidade, discernimento, coragem. A puxação nada tem a ver com algum possível empréstimo.

  2. zuca

    Aprendi muito com Francis. Uma: a ter ojeriza por Arnaldo Jabor, sua último inimigo público pessoal. Não dá pra esquecer: “Não esbordôo verbalmente ninguém a não ser em legítima defesa. Como São Paulo (o apóstolo) quase sempre tolero tolos de cara alegre. O máximo em hostilidade habitual é uma carranca e silêncio, que pode ser interpretado como dispepsia ou dor de cabeça.(Folha,11/08/97)

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