3:00No Guatupê

O jornalista José Carlos Fernandes mostra hoje, na Gazeta do Povo, com quantas letras se faz um texto onde a informação nos é presenteada com simplicidade, emoção, imagens, música, cheiro, sensação térmica, detalhes, enfim, uma peça rara, bela, leve, que só um artista pode criar a partir de um fato real – no caso, a troca de comando da Academia de Polícia Militar do Guatupê, onde o centro de tudo é o coração e a alma de um ser humano.  Acompanhem:

Segunda-feira última foi dia de solo de cornetas na Academia Militar do Guatupê – aquela da 277. Às 11 horas, fritando sob um sol de 31.8 graus, o coronel Joacir José da Silva passou o cargo de comandante para seu colega de caserna, o coronel Roberson Luiz Bondaruk, 46 anos. Os trajes eram de gala – uma tortura –, dilema que o governador Roberto Requião tirou de letra: vestia camiseta preta e keds. Cá entre nós, o chefe fica melhor de azul-piscina.

Confesso que não assistia a uma cerimônia militar tão bonita desde os tempos de fanfarra no Colégio Estadual Pedro Macedo. Adorei. Deu gosto ouvir o Hino Nacional com aquela ênfase toda em “têm mais vida” e “salve, salve”. Sem falar nas marchas diante do pavilhão – um luxo para a época que se rendeu à tirania do axé: “Tire os pés do chão.” Bolas.

Cerimônias militares são tão solenes que qualquer desvio do protocolo vira prenúncio da revolução. Pois é. Deu gosto ver o coronel Joacir soltar um “te amo, Elaine” no meio de seu discurso de adeus. E foi gozado o governador anunciar que o Guatupê vai ganhar uma piscina olímpica em 2009. “Aleluia”, devem ter pensado os impávidos cadetes fardados. Com aquele calor de chaleira fervendo, uma tromba d’água já estava mil de bom. “… um filho teu não foge à luta.”

Ressalva. A pompa e circunstância no Guatupê não passariam de uma encenação cívica se os repiques não estivessem saudando Bondaruk. Nos últimos anos, o coronel fez pela Polícia Militar do Paraná o que Kaká e Pelé fazem pelo Brasil. Ele chacoalhou a imagem da corporação – para melhor. Agora, à frente do Guatupê, difícil imaginar que alguém vá reparar no local só quando descer para a praia.

Às falas. Bondaruk não passaria em branco nem num encontro dos sócios do Clube Poltava. Além dos quase dois metros de altura, alongados pela farda, impõe tamanho respeito que é capaz de alguém encontrá-lo à paisana, no supermercado, e ainda assim fazer posição de sentido. “Sim, senhor!”

Mas a imponência desaba em minutos. O gigante – cujo sotaque, de tão curitibano, deveria ser registrado pelo Museu da Imagem e do Som – chama a todos de “amigo”, dispensa salamaleques e tem panca de bom moço.

Para que se tenha uma ideia, ele é ministro da Eucaristia na Paróquia Madalena Sofia. Deve dizer mais “Deus te abençoe” do que “é uma ordem.” Faz o tipo que não esconde sentimentos. Confessa até que já chorou numa operação policial – pondo para correr a síndrome de Super-Homem que acomete nove a cada dez policiais.

Não é tudo. Avis rara na corporação, Roberson é um pesquisador aguerrido, com sete títulos publicados e fôlego para mais 70. A contar pelo som e fúria com que faz planos editoriais, os 1,9 mil registros de seu nome na internet devem triplicar antes do próximo Sete de Setembro. Em miúdos, você compraria um carro dele. Eu também.

Quem me falou de Bondaruk pela primeira vez foi a advogada Jimena Aranda, especializada em Direitos Humanos, sua orientadora numa pesquisa sobre infância e adolescência em situação de rua. Ela contou que em parceria com assistentes sociais da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, o PM entrevistou 415 garotos que vivem no sereno. Na maioria das vezes, o fez sentado no meio-fio, provando, direto da sarjeta, que a turminha que apavora tanta gente sonha é jogar futebol e voltar para casa. E que se pela de medo de bandido.

Mesmo assim, na hora de publicar, apertou-lhe os coturnos. Ninguém queria apoiar um livro assinado por um PM. “Pátria amada” – Roberson não só deu meia-volta, volver, como passou a escrever em série. Tomou gosto: garante que vai transformar o Guatupê num centro de referência em estudos de segurança pública. Melhor não desdenhar.

Bondaruk nasceu de uma modesta família ucraniana do Parolin. Estudou no Colégio Estadual Guaíra e aos 17 anos decidiu que seria policial – “para mudar o mundo”. Mas estava em 1981. A neura nos quartéis ainda eram os subversivos e os aparelhos da esquerda. O resto a gente já sabe – os vermelhos tomaram o expresso 2222, o tráfico demarcou territórios e a polícia não ficou muito bem na foto.

Mas deixe estar. Ipiaê. Os ideais do jovem Roberson permaneceram tinindo feito boina nova. Os 130 cadetes do Guatupê vão saber do que se trata. Sei não, mas acho que vão cantar bem grosso a frase “iluminado ao sol do Novo Mundo.” Sem tirar os pés do chão.

Que toquem os repiques.

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6 ideias sobre “No Guatupê

  1. Martha

    Zé Beto, o texto do Zé Carlos deve ser emoldurado e colocado nas paredes das redações e nas salas de aula de Jornalismo. Informação e emoção nas doses certas. Poucos jornalistas têm esse dom. Parabéns ao nosso melhor cronista de humanidades.

  2. vander

    TB TENHO A MESMA OPINIÃO DE VCs GOSTEI DE MAIS DESSE ARTIGO DA GAZETA DO POVO PAGINA 3.

  3. Fâ número 1

    Zé,

    Você é, sem dúvida, o melhor jornalista da Terra das Araucárias.
    Escreve com poesia.
    Descreve com minúcias.
    Parabéns.
    Gostaria de ser você.
    Garanto que seria o orgulho da família.
    Como você deve ser!
    Que Deus o proteja. Muito e sempre!

  4. Gonzaga

    Parabéns, José Carlos. Vc é merecedor dos elogios e não deixe a burocracia das redações freiar seu talento.

  5. Pé Vermelho

    Isso mesmo, Zé, manda o manual da redação do Estadão prás cucuias, e o da Folha também. Atenção, redações: dagora em diante o manual é esse aí em riba, o do Zé Carlos Fernandes, que continua tendo Quem, Onde, Quando, Por que, mas com rima, com emoção, com talento.

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