por Carlos Castelo
Morávamos no bairro de City Butantã, em São Paulo, quando Raimundo Higino virou nosso hóspede. Eu ainda era um adolescente cabeludo e espinhento quando o vi entrar pelo portão com um jeito entre triste, desconfiado e marrento.
Raimundo Higino tinha sido funcionário de confiança da minha família no Piauí. Era uma espécie de faz-tudo.
Agora, aportava no Sul Maravilha porque precisava arrumar um emprego para bancar a esposa e as sete bocas à espera do sagrado leitinho.
Primeiramente, optou por tentar uma vaga de porteiro de prédio. No meu ócio da juventude, o acompanhava pelos condomínios do bairro. Raimundo Higino sempre fazia a mesma abordagem. Tocava o interfone, era atendido pelo funcionário, e dizia:
– Decente, estão precisando de porteiro aí, não?
– Tão não – era a resposta.
– Pois tá, então.
Seguíamos a tarde inteira, de portaria em portaria, ouvindo negativas. Até que entrava a noite e retornávamos à casa. O hóspede então se enfiava num quarto anexo do sobrado, fumando e ouvindo rádio de ondas curtas, até a madrugada – “pra ver se contam alguma novidade lá de Teresina”.
Após dois meses de buscas pela função de porteiro, sem sucesso, Raimundo Higino decidiu virar uma chave em seu destino. Percebeu o alto número de carros na capital e se ofereceu para lavá-los em domicílio. O diferencial era fazer a limpeza com querosene, o que turbinava o brilho.
Foi um sucesso, a agenda lotou rápido. Passaram até a chamá-lo de “Mundinho do Querosene”. Isso até que, ao proceder a lavagem numa Variant, fagulhas de seu Continental sem filtro tocaram a lataria da perua e houve um incêndio de grandes proporções na avenida Vital Brasil.
Passada a desdita, Raimundo Higino me confessou que estava com a ideia de criar coelhos num terreno do meu pai. Foi dar essa informação e se fechou no quarto, só saindo para, como um cuco, botar a cabecinha na janela e me perguntar:
– Quanto é 39 veiz 4?
Ou:
– 119 menos 6 é…?
Obtido o resultado, voltava ao bloquinho de contas. O business plan para garantir a coelhada seguia à carga máxima.
Dias mais tarde, Raimundo Higino asseverou ao papai que poderia produzir, “muito ligeiro”, 120 coelhos para abate. Iniciando o processo com apenas quatro cabeças, algumas gaiolas, e a cessão do referido terreno.
Três meses depois, uma inesperada peste arrastou ao túmulo todos os leporídeos do hóspede.
Novo confinamento no cômodo anexo. Ouvia-se apenas o velho rádio Philco, de ondas curtas, falando em russo, chinês, árabe e outras galimatias.
Uma manhã, ao me ver passar, Raimundo Higino indagou:
– Que dia é hoje, rapaz?
– 7 de junho de 1992 – respondi.
Com lágrimas nos olhos, e olhar melancólico, ele se fez uma promessa inesquecível:
– Pode anotar. Se até o dia 7 de junho de 2012 eu não me ajeitar em São Paulo, e trouxer minha família, eu me mato.
(Publicado no O Dia)