8:15A arte abortada no ovo

por Ruy Castro

Alguns artistas não se importam se sua obra não chegar ao público. O importante é fazer

Woody Allen acaba de lançar nos EUA seu 50º filme, “Coup de Chance”. E, como acontece há anos, viu-o ser mal distribuído, friamente recebido pela crítica e quase ignorado pelo público. É terrível porque, em seu auge, ninguém foi mais amado e admirado que Woody —produtores e exibidores brigavam por cada metro de filme que ele rodasse. Hoje, ele é um pária. A sórdida campanha de destruição que lhe impuseram, com acusações nunca provadas, deu certo.

Mas ele não se entrega. Numa entrevista sobre “Coup de Chance”, disse que, se não quiserem exibi-lo, tanto faz, porque o mais importante já aconteceu: ele fez o filme. A arte está em fazer.

A arte, sim, mas e o business? Se a obra não vai a público, em que ficamos? Nem sempre é por culpa do artista. Em vida, Van Gogh nunca vendeu um quadro, Kafka sequer publicou um livro e Newton Mendonça, parceiro de Tom Jobim em “Desafinado”, morreu antes que a bossa nova estourasse. A posteridade os salvou, mas não lhes permitiu gozar o sucesso.

Outros artistas foram até mais longe do que Woody quanto a mostrar —ou esconder— sua obra. O poeta carioca Duque-Costa (1894-1977) aceitava publicar em jornais, mas nunca quis fazer um livro com seus poemas. Não que não devesse. Eis o final de seu soneto “A Tempestade”, de 1917: “Ruivo de raiva, o raio risca, ronca/ Rompe, ricocheteia e em relâmpago erra/ E abre brechas e brame e racha a grota bronca.// Lembra campas de bronze, indo aos tombos em pompas/ Roma em ruínas, a arder e rolando por terra/ Num estrondo infernal de petardos e trompas”. Ezra Pound, se o conhecesse, adoraria. Mas Duque teve de morrer para que os herdeiros fizessem seu livro.

E ninguém mais radical que outro poeta, o paraense Jayme Ovalle (1894-1955), ídolo de Manuel Bandeira. Quando um poema surgia em sua cabeça, Ovalle não admitia nem que ele se formasse mentalmente. Abortava-o no ovo.

*Publicado na FSP

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