7:27Um tapa na cara do politicamente correto

por Carlos Castelo

Pelo jeito, só gosto de filmes que não ganham o Oscar.  Todo ano é isso. Em 2024, as produções que mais apreciei foram Eu, Capitão e Ficção Americana.

O primeiro mostra a saga de dois jovens senegaleses rumo à Itália. Pela temática, já achei um milagre estar brigando pelos prêmios mais importantes.

Já Ficção Americana é daquelas fitas (como dizia-se no meu tempo de garoto) completas. Tem provocação, ironia, grandes interpretações, crítica social, humor e drama – tudo ao mesmo tempo, agora, e em 24 quadros por segundo. Se jurado fosse, votaria como o melhor do ano.

Thelonious “Monk” Ellison, interpretado por Jeffrey Wright, é um autor negro que se encontra em um beco sem saída criativo quando suas obras são rejeitadas por não se encaixarem no estereótipo esperado do escriba com a sua cor de pele.

Enquanto isso, o best-seller We’s lives in da ghetto da também negra Sintara Golden, vivida por Issa Rae, domina as listas de vendas, turbinando a frustração de Thelonious.

Em um momento de iluminação (ou loucura?), ele decide adotar um pseudônimo e escrever uma sátira mordaz, mirando as incoerências do mercado editorial. O que se segue é um hilariante caminho de autodescoberta e uma potente crítica às expectativas literárias.

Quando a obra é boa, nos leva a boas obras. Na primeira cena, escrito na lousa, atrás do professor Thelonius, está o título de um conto de Flannery O’Connor: O Negro Artificial. Fui naturalmente lê-lo. E, como esperava, o texto adiciona ainda mais tempero à trama do audiovisual.

A essência de Ficção Americana está em questionar se a literatura produzida hoje pelos afro-americanos estadunidenses é, de fato, transformadora socialmente. Ou se, de certa forma, está aí para aplacar a culpa dos WASP’s de New Hampshire e quejandos. Abordagem corajosa que contradiz, de A a Z, todos os preceitos do politicamente correto. Apenas por esse detalhe já deveria ter recebido, no mínimo, a estatueta de melhor roteiro do Oscar.

O que falta ao cinema contemporâneo é justamente o que há de sobra em Ficção Americana: ousadia. A impressão que se tem assistindo a produção atual é que todos os filmes são como o Kung Fu Panda; sejam eles drama, comédia, musical e até de horror. Invariavelmente, há uma história fraca, infantiloide, inverossímil, com algumas tentativas fracassadas de ser irônica ou engraçadinha. Se tirarmos o Panda, as artes marciais, e o substituirmos pelo Anthony Hopkins, eis aí o que se pode ver na Netflix.

Por mais Ficção Americana no cinema. Porque, se continuar assim, a Sétima Arte vai acabar caindo para a oitava, nona…

 (Publicado no Estadão)

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