8:44Breve reflexão sobre a velhice

por Mário Montanha Teixeira Filho

O menino que a pessoa conserva em si é um obstáculo no caminho da velhice. (Stanislaw Ponte Preta)

Alguns anos atrás, quando completei os sessenta e as leis declararam a minha velhice civil, senti um vento leve bater na minha cara. Um vento até agradável, que talvez tentasse dizer algo que eu não percebi. Encarei a data com serenidade, sem pensar em quase nada, bem diferente do que se deu quando do meu cinquentenário agitado, num dia frio em que as pessoas se protegiam de uma gripe espalhada pelo planeta, na antessala do grande surto pandêmico que viria pouco tempo depois. Era uma impressão estranha de quem se despedia dos últimos vestígios da juventude e se largava na direção de uma esquina sombria e desconhecida. Resisti, de qualquer modo.

A senilidade confirmada na década seguinte não me perturbou. Nenhuma mudança brusca se pôs entre mim e o mundo, e a minha disposição para as atividades que me agradam não sofreu abalo aparente. Passei a usufruir de pequenas comodidades, como vagas preferenciais em estacionamentos, descontos mentirosos na compra de ingressos para espetáculos culturais, prioridade nas filas de bancos e mercados e outras que o honorável sistema jurídico me proporcionou. 

De início, não cheguei a notar que estava velho. Aos poucos, porém, a realidade me jogou na cara o ledo engano. Pessoas mais jovens começaram a me cumprimentar na rua, encarando-me como um homem frágil a ser protegido, abrindo passagem com olhares de preocupação e uma certa dose de pena. Isso tudo numa cidade de seres majoritariamente encolhidos em suas tramas individuais, de olhares desconfiados e palavras poucas.

Não fosse assim, outros sinais haveriam de me dar o alerta. Num período curto, fui protagonista de pequenos acidentes. Ao sair de um restaurante, minhas pernas se embaralharam, de modo a me fazer perder o degrau da escada, e jogaram meu corpo no asfalto. Permaneci lá, estatelado, poça de sangue sob a cabeça, assistido por uma multidão curiosa a me olhar à espera do socorro verdadeiro. Passado o vexame, veio outro dia atrapalhado, em que uma das minhas mãos se queimou quando eu manipulava, meio sem jeito, uma chaleira de água fervente. E tornei a cair logo em seguida, agora na calçada perto de casa, num passeio com a Nina, minha amiguinha lhasa. O tombo rompeu os ligamentos do meu calcanhar e me deixou de molho por muitos dias, daqueles longos e aborrecidos. 

São eventos que podem acontecer com qualquer um, incluídos os moços, dirão os otimistas. É verdade. Minha incursão no mundo da terceira idade não vem desses episódios aleatórios. Mas é forçoso reconhecer que as coisas mudaram, não são mais como antes. Mesmo que a cabeça não fique toda hora a me lembrar da minha antiguidade, os movimentos que faço atualmente exigem um grau de concentração enorme, quase exaustivo. Abaixar-me para catar objetos no chão, carregar peso, acelerar o passo, esticar o corpo, chutar uma pelota, tudo ficou mais sofrido e difícil. Ganhei um medo permanente, que me faz pensar que a qualquer momento, sem equilíbrio, verei a paisagem que me cerca girar outra vez.

Talvez a experiência que acumulei sirva para compreender melhor o que Gabriel Garcia Márquez quis gravar em seu romance autobiográfico “Memórias de minhas putas tristes”. Nele, o personagem central, um nonagenário preso a um balanço sobre a vida e sobre si mesmo, recorda que a primeira noção da velhice lhe veio logo depois dos quarenta, numa consulta médica que o fez perceber que estava condenado a despertar “cada dia com uma dor diferente, que ia mudando de lugar e forma à medida que passavam os anos”. A dor que insiste, penso agora, talvez seja uma só, a mesma de sempre, que percorre o corpo e perturba o humor. Isso faria parte de um processo de mudanças lentas, “tão lentas que mal se notam”, eis que “a gente continua se vendo por dentro como sempre foi”. O problema é que, “de fora, os outros reparam”. 

Estou longe dos noventa, mas não me é indiferente o que virá, ainda que, como disse no início, a condição do presente me seja satisfatória, sem motivo de queixas mais duras. O danado é que as reflexões sobre a velocidade do tempo tendem a gerar uma profusão de lamúrias, um mar de pessimismo. Dedico-me, então, a um esforço para superar o clichê, e vou atrás de frases edificantes sobre ser velho. Minha fonte, o dicionário universal de Paulo Rónai (Editora Nova Fronteira, 1985), traz muitas citações a respeito, mas elas pouco me servem. São máximas filosóficas, ou humorísticas, ou motivacionais, que não traduzem o que sinto. Delas, consigo extrair pouco mais do que o dito de um poeta gaúcho, Fraga, que se aproxima dos ensinamentos do Gabo e seu narrador melancólico: “não estamos realmente velhos enquanto nossos anos não começam a pesar nos outros”.

Pois é. Nada a ser acrescentado, nada de novo, o que talvez explique a conclusão de outro frasista, Eno Wanke, para quem a velhice de fato tem as suas vantagens. “Só resta agora descobrir-se quais são elas”. Para saber, espero ficar mais um tempo por aqui, de mãos dadas com o menino que sobrevive em mim.  

Compartilhe

4 ideias sobre “Breve reflexão sobre a velhice

  1. Sheyla Nigro

    Não somos velho!
    Vou fazer 77 anos e a minha cabeça é de 50,
    sendo só um número e nada mais. O que denuncia para nós sim, é esse número ingrato. Passo despercebida porque a minha aparência é jovem como também o meu espírito. Sou alegre,dou muitas risadas. Os limites que o nosso corpo apresenta são realmente dessa idade,e vem o medo de cair,de atravessar a rua, de andar mais rápido
    movimentos bruscos e trincas de todo jeito.

  2. Célio+Heitor+Guimarães

    Apesar dos sessentinha (ou seriam sessentinhas?), você jamais envelhecerá, meu caro Da Montanha. Tem mente jovem, talento jovem e uma disposição para a luta extremamente jovem. Do alto dos meus cansados oitentinha (ou oitentinhas?), digo-lhe, como Eno Wanke, que a velhice tem, de fato, suas vantagens. E quem já as descobriu, sabe que nem sempre são agradáveis. A conscientização, por exemplo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.