8:32A tortura factual de Toffoli

por Diego Escosteguy, em O Bastidor

A decisão do ministro Dias Toffoli que anulou as provas da Odebrecht contém erros rudimentares de informação e omissões significativas de fatos imprescindíveis à compreensão sóbria do acordo de leniência do grupo empresarial. A peça (leia abaixo versão anotada) é rica em adjetivos e pobre em técnica – e lógica.

Toffoli resolveu classificar como “imprestáveis” todas as evidências entregues pela Odebrecht. Fez isso em razão do teor das mensagens da Vaza Jato e por meio do entendimento de que o acordo foi fechado sem que procuradores e juízes obedecessem aos trâmites legais necessários.

O ministro – assim como Ricardo Lewandowski, seu antecessor nesse caso, e Cristiano Zanin, advogado que moveu o processo em favor de Lula e que por ele foi agora nomeado ao Supremo – interpreta os diálogos roubados pelo hacker Walter Delgatti sob a pior luz possível aos procuradores, delegados e juízes. Não há qualquer esforço de contextualizar as conversas e buscar elementos que as esclareçam. Apenas se atribui vilania onde ela pode ser encaixada.

A leitura simplória dos trechos provoca erros rudimentares. E facilita a profusão de ilações que assomam na decisão. As mensagens tornam-se o veículo pelo qual Toffoli adentra o acordo de leniência da Odebrecht – e nelas se perde, ao ignorar a abundância de fatos e processos que documentam o caso. Tudo escandaliza a quem está condicionado, pela propaganda política dominante no país, a se escandalizar.

Conversas rotineiras entre procuradores e seus pares nos Estados Unidos e na Suíça viram prova de que as autoridades brasileiras estavam a serviço do FBI, “armando” contra um “inocente” e “remetendo recursos” do Brasil para outros países, como se o acordo de leniência da Odebrecht envolvesse autonomamente três países. É o tipo de afirmação abilolada que se encontra em blogs dominados por propaganda, que se aproveitam da ignorância do público acerca de acordos de colaboração e de tratados bilaterais de cooperação para disseminar patranhas ideológicas.

O complexo acordo de leniência da Odebrecht está documentado no Supremo Tribunal Federal, na Procuradoria-Geral da República, na Justiça Federal do Paraná e no Ministério da Justiça. Ele envolveu negociações intensas entre procuradores brasileiros e advogados do grupo. Dezenas de autoridades participaram das tratativas; outras tantas nos acordos da Odebrecht nos Estados Unidos e na Suíça. O gabinete do ministro Teori Zavascki supervisionou os trâmites. Quando ele morreu, a ministra Cármen Lúcia prosseguiu com os trabalhos. O Supremo homologou o acordo. A Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal chancelou as tratativas.

Mediante o acordo, a empresa e os colaboradores entregaram voluntariamente um volume imenso de evidências, sobretudo a íntegra dos sistemas do departamento de propinas da Odebrecht. Gravaram depoimentos em vídeo. Fizeram tudo isso porque, em etapas antecedentes, os investigadores no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos haviam obtido, especialmente, as contas secretas de propina transnacional do grupo – a Odebrecht chegou a comprar um banco para gerir as transações. A quantidade de evidências de crimes, e a escala deles, era inédita, até mesmo para os padrões brasileiros. A negociação do acordo transcorre nesse contexto.

Toffoli, assim como Lewandowski, cita mensagens em que procuradores mencionam conversas com colegas no FBI e transporte de HDs da Odebrecht em sacolas de supermercado para concluir que o acordo seguiu à margem da lei. Quem lê a decisão do ministro e desconhece o caso supõe que um dos maiores grupos empresariais da América Latina resolveu aparecer um dia no Ministério Público com evidências de crimes multinacionais numa sacola de supermercado. E que os procuradores combinaram tudo isso por mensagens, sob ordens do juiz do caso. Não se trata de um assalto aos fatos e à história. É uma agressão ao bom senso e à capacidade cognitiva da plateia.

Os sistemas de propina da Odebrecht, já parcialmente obtidos pela Polícia Federal e pelos procuradores suíços naquele momento, foram entregues pelos colaboradores. Aqueles que manejavam os pagamentos confirmaram o teor das informações dos sistemas e esclareceram operações desconhecidas. Ao contrário do que diz o ministro Toffoli, o MP brasileiro pediu à Suíça, via Ministério da Justiça, em 2016, o mesmo material – e o recebeu, em 2017, também por intermédio do Ministério da Justiça. O acervo passou por perícia do MPF e da PF. Os laudos estão à disposição de Toffoli, assim como sempre estiveram à disposição de Lewandowski.

Também estava à disposição de Toffoli um parecer da Corregedoria do MPF acerca da conduta dos procuradores na condução do acordo com a Odebrecht. A pedido de Lewandowski, a PGR instaurou uma apuração e analisou as questões levantadas pelo ministro. Segundo o parecer, não houve qualquer irregularidade nas tratativas – ao contrário. Toffoli, porém, nem sequer cita o parecer; é como se essa evidência não existisse, assim como os fatos presentes nos autos que envolveram a negociação do acordo. Para tomar uma decisão tão severa, é de se esperar que o ministro e sua equipe tivessem analisado e sopesado todas as peças, enfrentando-as factual e juridicamente. Seria igualmente prudente que uma decisão dessa magnitude fosse discutida antes no plenário do Supremo.

A própria participação de Toffoli como juiz desse processo é questionável. Ele seria imparcial para julgar esse caso? Toffoli foi implicado na Lava Jato em consequência do acordo da Odebrecht. Emails apreendidos num computador de Marcelo Odebrecht indicam pagamentos do grupo a Toffoli, quando este era advogado-Geral da União no segundo governo de Lula. Ao depor em juízo sobre os emails, Marcelo Odebrecht confirmou o teor deles e indicou que os pagamentos descritos nas mensagens dariam-se por meio de um advogado próximo a Toffoli. O grupo de trabalho da Lava Jato na PGR pediu a abertura de investigação para elucidar o caso, mas Augusto Aras a derrubou, pouco antes de matar as forças-tarefas. Planilhas da OAS registram pagamentos para a reforma de uma casa do ministro em Brasília. Léo Pinheiro, que tocava a empreiteira, contaria o caso em sua delação, mas o tópico foi arquivado sem investigação pela então procuradora-Geral Raquel Dodge.

Talvez por quase ter sido alvo das investigações, Toffoli tenha recorrido a hipérboles em maiúsculas e negrito em sua decisão. Falou, entre outras coisas, em “PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI”, a fim de buscar “provas” (as aspas são do ministro) contra inocentes – o principal deles sendo o presidente Lula. Foi tudo uma “armação”, disse o ministro. Em maiúsculas que são dele, afirmou: “SE UTILIZOU UM COVER-UP DE COMBATE À CORRUPÇÃO, COM O INTUITO DE LEVAR UM LÍDER POLÍTICO ÀS GRADES, COM PARCIALIDADE E, EM CONLUIO, FORJANDO-SE “PROVAS”. Como discutir contra caixa alta?

O ministro não se limitou a anular as provas da Odebrecht. Ele validou provas inquestionavelmente ilícitas – as mensagens da Vaza Jato – e deu publicidade a elas como meio de prova para desqualificar o acordo da Odebrecht e determinar a investigação da conduta de todas as autoridades envolvidas na colaboração. Toffoli talvez não saiba, mas o número de funcionários públicos que participaram das tratativas passava, tranquilamente, da casa das dezenas. É bastante gente para investigar, inclusive gente que trabalha e trabalhava no Supremo. O ministro estipulou que a AGU e o TCU investiguem os responsáveis, o que foge à competência desses órgãos. (Poucos minutos após a decisão, a AGU anunciou uma “força-tarefa” para investigar a Lava Jato; Flávio Dino disse que a Polícia Federal entraria no caso.)

É impossível analisar a decisão de Toffoli somente como peça jurídica. Ela se insere num movimento político e empresarial que visa a anular não apenas as provas dos casos de corrupção apresentados ao Brasil e ao mundo na década passada; visa a anular os fatos, reescrever a história recente do país e assegurar que nada parecido aconteça tão cedo. Retomar o controle dos fatos – estabelecer o controle da história a ser contada sobre a Lava Jato – significa manter o controle político do país na oligarquia que sempre mandou nele, do jeito que sempre mandou nele. No Brasil de 2023, o acordo da Odebrecht, e tudo que ele significa para quem voltou ao poder ou quem dele nunca saiu, não pode mais existir. É preciso anular a memória dele.

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2 ideias sobre “A tortura factual de Toffoli

  1. Luiz

    O Brasil tem sido governado por uma oligarquia de bandidos e corruptos que sempre trabalharam juntos para tentar derrubar os que possam tirá-los do poder. Corruptos da esquerda e da direita, junto com PGR e parte do STF, unidos para eliminar a ameaça de qualquer alternativa ao roubo ininterrupto do povo. Tristes trópicos onde uma “Nação do futuro” nunca chega.

  2. Francisco Lima

    Sobre o autor do texto acima eis o que escreveu Joaquim Barbosa, há algum tempo atrás:

    O presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, contestou informações da reportagem “Não serei candidato a presidente”, publicada na edição 823 de ÉPOCA. Um extrato de sua carta foi publicado na edição 825, que está nas bancas. A íntegra é transcrita abaixo, seguida de nota da redação.

    “A matéria ‘Não serei candidato a presidente’, divulgada na edição nº 823 dessa revista, traz em si um grave desvio da ética jornalística. Refiro-me a artifícios e subterfúgios utilizados pelo repórter, que solicitou à Secretaria de Comunicação Social do Supremo Tribunal Federal para ser recebido por mim apenas para cumprimentos e apresentação. Recebi-o por pouco mais de dez minutos e com ele não conversei nada além de trivialidades, já que o objetivo estabelecido, de comum acordo, não era a concessão de uma entrevista. Era uma visita de cunho institucional do Diretor da Sucursal de Brasília da Revista Época. Fora o condenável método de abordagem, o texto é repleto de erros factuais, construções imaginárias e preconceituosas, além de sérias acusações contra a minha pessoa.

    A matéria é quase toda construída em torno de um crasso erro factual. O texto afirma que conheci o ministro Celso de Mello na década de 90, e que este último teria escrito o prefácio do meu livro ‘Ação Afirmativa e princípio Constitucional da Igualdade’. Conheci o ministro Celso de Mello em 2003, ano em que ingressei no STF. Não é dele o prefácio da obra que publiquei em 2001, mas sim do já falecido professor de direito internacional Celso Duvivier de Albuquerque Melo, que de fato conheci nos anos 90 e foi meu colega no Departamento de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Mais grave, porém, é a acusação de que teria manipulado uma votação, impedindo deliberadamente que um ministro do STF se manifestasse. O objetivo seria submeter o ministro a pressões da ‘mídia’ e de ‘populares’. Isso não é verdade. Ofensiva para qualquer cidadão, a afirmação ganha contornos ainda mais graves quando associada ao Chefe do Poder Judiciário. Portanto, antes de publicar informação dessa natureza, o repórter tinha a obrigação de tentar ouvir-me sobre o assunto, o que pouparia a revista de publicar informação incorreta sobre minha atuação à frente da Corte.

    No campo pessoal, as inverdades narradas na matéria são ainda mais ofensivas e revelam total desconhecimento sobre a minha biografia. Minha mãe nunca foi faxineira. Ela sempre trabalhou no lar, tendo se dedicado especialmente ao cuidado e à educação dos filhos. O texto, que me classifica como taciturno, áspero, grosseiro, não apresenta fundamentos para essas afirmações que, além de deselegantes, refletem apenas a visão distorcida e preconceituosa do repórter. O autor da matéria não apresenta elementos que sustentem os adjetivos gratuitos que utiliza.

    Também desrespeitosa é a menção aos meus problemas de saúde. Ao afirmar que a dor causou ‘angústia e raiva’, o jornalista traçou um perfil psicológico sem apresentar os elementos que lhe permitiram avaliar o impacto de um problema de saúde em uma pessoa com a qual ele nunca havia sequer conversado.

    Outra falha do texto é a referência à teoria do ‘domínio do fato’. Em nenhum momento a teoria foi evocada por mim para justificar a condenação dos réus no julgamento da Ação Penal 470. Basta uma rápida leitura do meu voto para verificar esse fato.

    Finalmente, não tenho definição com relação ao momento de minha saída do Supremo e de minha aposentadoria. Muito menos está definido o que farei depois dessa data, embora a matéria tenha afirmado – sem que o jornalista tenha sequer tentado entrevistar-me sobre o tema – que irei dedicar-me ao combate ao racismo.

    Triste exemplo de jornalismo especulativo e de má-fé.”

    Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal”

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