7:31Uma Nova Igreja

por Fernando Muniz

O Destruidor, embora feliz com o caos que impera no reino, resolve que já é hora de tornar as rédeas de tudo. Chega de ministros e seus subordinados, um bando de porcos que trama conspirações do café da manhã à ceia noturna. Chama um dos últimos lobos cinzentos de sua confiança, velho, caolho, sobrevivente dos expurgos que levaram a nova casta ao poder e dá a ele uma missão, com plenos poderes para executá-la.

“Vá atrás de alguém que possa tornar as minhas palavras a Verdade Incontestável”.

O lobo sabe exatamente quem procurar. Desce ao calabouço do palácio e pede para chamar a prisioneira jogada na cela mais imunda.

“O que você quer de mim? Já não basta tudo o que fizeram comigo e com a minha família”?

“Calma. A senhora está muito exaltada. Quem sabe se não trago boas notícias”?

A mulher, vestida com trapos e coberta de sujeira, continua a exalar a majestade dos seus dias de pastora-mor da Igreja Oficial. Examina o lobo de cima a baixo, com desplante; ele, ao invés de se ofender, fica ainda mais convicto de que ela, capaz daquele descaramento prestes a ser decapitada, é a pessoa com quem o Destruidor deve contar; alguém com a sua história de vida, grande demais para acabar no patíbulo.

O lobo explica o motivo da visita e não recebe resposta. Sem problemas. Ela precisa de tempo para assimilar as novidades. Ordena que a execução seja suspensa e retorna ao seu gabinete; muito trabalho a fazer. Começa a estudar a acusação e os milhares de documentos do processo.

A pastora, órfã aos quatro anos e viúva do tio aos dezesseis, adotou o marido quando ele tinha treze anos, resgatando-o da miséria e promiscuidade que infestam a periferia da capital do reino. O rapaz, assim que se adapta à nova vida, encanta-se com a filha da pastora, cinco anos mais velha, uma menina acostumada com o luxo eclesiástico, mas que, enfastiada, buscava novas aventuras existenciais. A pastora deu permissão para que o casal morasse junto, nos fundos da basílica, pois o rapaz ainda não tinha idade para casar. A filha e o rapaz, de tão felizes, só poderiam ter sido abençoados por Deus, é o que a pastora pensou com uma certa inveja e apesar de os livros da igreja não aprovarem o casamento de um rapaz tão novo.

A felicidade, assim como veio, um dia desaparece, não resistindo aos caprichos da filha, que logo se cansa da monogamia e parte para outras experiências. A pastora, após jejuar por vários dias, interpretar as antigas escrituras e ler sobre os pastores que vieram antes dela, assume o lugar da filha, primeiro acolhendo o rapaz em seu quarto e, assim que ele fez dezoito anos, casaram-se, no dia dos seus quarenta e três anos. Um belo presente a si mesma, que, de mãe, tornou-se sogra e, daquele dia em diante, o tem como marido.

Os dias passam e novo casal resolve que, para manter a felicidade familiar, deveriam aumentar a descendência. Cem jovens, garotos e garotas dos pontos mais distantes do reino, são adotados. A filha dá pulos de alegria; era tudo o que sempre desejara, muitos irmãos, dormindo e acordando juntos, livres, espalhados pelos quartos, pátios e jardins da basílica.

Nunca a Igreja Oficial atingira tanta popularidade como naquele período; nos cultos, cada vez mais concorridos, a palavra de Deus ecoava bem fundo no espírito dos fiéis. Antigos costumes, criticados apesar de constarem nas escrituras, passaram a ser tolerados novamente.

Mas nem todos os pastores da Igreja Oficial se adaptaram às mudanças e as intrigas começaram. Existiriam filhos preferidos pela pastora, meninos e meninas, com acesso total ao seu quarto enquanto o marido estava em viagens para fiscalizar os assuntos da Igreja. Alguns filhos e filhas receberiam presentes especiais, joias até, em uma ostentação que não encontra eco nas escrituras. O marido, à frente das finanças eclesiásticas, passa a cobrar uma parcela dos dízimos para pagar as contas da família, numerosa e que começa a crescer com os primeiros netos – ou filhos – dele.

O marido toma para si, até mesmo, a tarefa de opinar sobre o progresso dos pastores na carreira. Àqueles que se colocassem contra a nova ordem, denúncias, condenações sumárias, ostracismo e expulsão da Igreja.

Tudo corria bem até uma fiel, faxineira da basílica, contar a um dos descontentes ter visto a pastora-mor, o marido, a filha e um dos seus irmãos, diácono na basílica, saírem de um mesmo quarto em um domingo de manhã, de toalha branca e cabelos molhados, em uma ala de acesso restrito. A notícia ganha as ruas e as primeiras páginas, chegando aos porcos do Conselho de Ministros. Eles, enxergando uma oportunidade de se apropriar das riquezas da Igreja, aproveitaram um dia em que o Destruidor estava em uma caçada e assinaram a sentença de morte da pastora e do marido; limpeza ética e acesso aos cofres da Igreja. A filha mais velha, desesperada, joga-se do alto da torre do sino da basílica, em martírio.

Pois agora essa família, uma vez tão feliz e carismática, seguidora dos costumes estampados nas velhas escrituras, resta destruída por acusações horrendas, de corromper menores e se apropriar do dinheiro da Igreja.

O lobo faz um resumo das dúzias de volumes do processo e o apresenta ao Destruidor, que lê tudo com atenção. Bate a mão na mesa e solta um grito. “Chamem o chefe de polícia”!

Não demora muito e um cão gordo e fedorento se apresenta, batendo continência. “Pois não, excelência”! O mau cheiro causa ânsia de vômito aos presentes. “Diga-me: por que a pastora-mor e seus mais chegados estão presos”?

O cão não entende a pergunta e irrita o Destruidor, que repete. “Por que ela está presa”?

“Porque… os porcos investigaram umas denúncias e assinaram uma sentença”. Fala o que vem à cabeça, sem pensar nas consequências. O Destruidor, indignado, busca o punhal na cinta e o degola. Dirige-se aos outros membros da comitiva policial, espantados com a quantidade de sangue pelo chão e aponta para a porta. “Libertem a pastora e sua família. Se essa história ganhou tanta importância é porque a verdade deve ser o contrário do que está escrito no processo. Ainda mais depois que a gente sabe quem assinou a sentença”. Olha para o punhal e começa a limpar a lâmina. “E chamem os porcos”!

O lobo, apesar de satisfeito com a vingança, olha para a poça de sangue e sente um calafrio. “Senhor, mas e se ela não quiser cooperar”?

O Destruidor, ocupado com a lâmina, pensa em voz alta. “Ela? Se não cooperar? Isso não vai fazer a menor diferença. Uma trama dessas, de amor, ganância, traição e morte merece ser recontada”.

Um novo evangelho precisa ser escrito.

Para uma nova igreja.

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