7:51Deliberações entre Adultos

por Fernando Muniz 

“Boa noite. Me chamo Plauto, novo administrador do condomínio. Verifico que temos quórum e declaro aberta a reunião. Como não conheço a todos, peço que se apresentem ao pedir a palavra. O primeiro assunto da pauta gira em torno do uso da quadra e o conserto de alguns equipamentos esportivos, em especial a tabela e a cesta de basquete”.

“Olá a todos. Eu sou o Marco Aurelio, da casa 05. Muito prazer, Plauto. Quanto à quadra, acho que devemos deixar as cestas como estão. Quem entortou que trate de consertar”.

“De fato, elas estão muito tortas. Uma alternativa é consertarmos. Tomei a liberdade de pedir alguns orçamentos”. Plauto procura a pasta de documentos. “Eles estão um pouco altos porque pedi cotações de estruturas mais fortes”.

Marco Aurelio não se contém. “Mas isso é um absurdo! Depois de tantos pedidos, tem gente que não está nem aí. E para piorar as coisas a ideia é socializar o prejuízo?!”.

Antes que Plauto esboce reação, outro condômino toma a palavra. “Olá, eu sou Flavio Augusto, da casa 32. A minha sugestão é simples. Vamos colocar câmeras na quadra. E na sala de ginástica também, porque tem gente que deixa o lugar um nojo após fazer exercícios”.

“Opa, Graco, da 19. Será que precisamos instalar um ‘estado policial’ aqui dentro? Acho essa ideia de câmeras meio chinesa demais”.

Plauto tenta reduzir a polêmica. “Na minha opinião, o uso de câmeras que monitorem os condôminos é complicado. Sem dúvida que a tabela de basquete que temos não aguenta o peso de um adolescente ou um adulto e quem fez isso deveria aparecer e pagar. Mas, já que não podemos deixar a quadra assim, sugiro analisarmos alternativas mais resistentes, que, inclusive, sustentem o peso de um adulto”.

“Ou seja: além de socializarmos o prejuízo, vamos premiar quem se pendura com uma tabela mais resistente. Palmas para a nova administração! Por sinal, me chamo Julio Cesar, da casa 07, síndico daqui até ‘profissionalizarmos’ a gestão”. Faz um sinal de aspas, com os indicadores, ao dizer “profissionalizarmos”.

“Aproveito a fala do Julio e trago mais um assunto para a nova gestão profissional que inauguramos hoje” – o condômino passa o celular, com a foto de um cocô de cachorro, aos presentes. “Por sinal, para quem não me conhece eu sou o Pompeu, vizinho do Julio, da casa 06”. Faz um olhar de muxoxo ao síndico e a Graco, mais novo entre os condôminos. E aperta a mão de Julio Cesar, em sinal de apreço, respeito e intimidade. Sequer toma conhecimento de Flavio Augusto, apesar de o rapaz ser neto de um amigo próximo.

Plauto analisa a fotografia. “Bom, esse tema, se não me engano, é o quarto da nossa pauta e…”. Pompeu o interrompe. “Veja só, eu sou senhor de idade, com pouco tempo ou paciência para burocracias. Sugiro invertermos a pauta e resolver esse assunto, que é recorrente. Não importa quantas reuniões sejam feitas, avisos sejam mandados ou mesmo a imposição de multa a infratores. É a mesma coisa que acontece com o uso da quadra. Tem gente que, simplesmente, não tem educação. Coisa de quem não tem berço, sabe seu Plauto?” Pompeu olha com desdém para os sapatos do síndico, sujos de terra. “E aí eu lhe pergunto: o que o senhor e a sua empresa de administração têm a oferecer para colocarmos um fim ao vandalismo na quadra ou à caganeira nos jardins?” A palavra “caganeira” soa muito estranha ao vir de um senhor tão distinto, vestido com aprumo e maneiras de um capitão de indústria, ou senhor de engenho.

Graco, de espírito prático, dono de uma rede de lojas populares e dotado da resiliência de quem se faz sozinho na vida, tenta manter a objetividade. “Seu Pompeu, boa noite. Cheguei faz pouco tempo aqui no condomínio e não ‘tou por dentro desses assuntos que não se resolvem nunca. Mas ‘tamos numa reunião com uma pauta definida e, neste assunto em discussão, temos duas posições: a socialista, do Plauto, que propõe o reforço das cestas e a divisão dos custos. E uma, chinesa, do Flavio, de instalarmos câmeras de vigilância na quadra”. Flavio Augusto o interrompe. “Chinesa não! Isso é coisa de marqueteiro”. Ninguém ri da tentativa de aliviar o clima e Graco retoma o raciocínio. “Pois eu sugiro uma terceira. Vamos consertar a cesta e, de agora em diante, a porta de acesso à quadra vai ficar trancada. Quem quiser usar vai ter que pedir a chave na portaria e devolver dali a, digamos, umas duas horas. Assim saberemos quem usou e, no dia em que acontecer alguma coisa lá, vamos poder apontar o dedo para o suspeito. A pessoa que pegar a chave ficará responsável pelo que acontecer lá até entregar de volta. Dá para fazermos o mesmo com a sala de ginástica. Que tal, pessoal?”

É a vez do último dos presentes se pronunciar. “Boa noite. Silas, da 11. Concordo com a sugestão do Graco. Quem pegar a chave se responsabiliza pela quadra. E pela sala de ginástica, se pegar a chave de lá. E o porteiro anota. Se ele não controlar quem pegar as chaves, rua. Quanto aos cachorros, senhor Pompeu e senhor Julio, repito o que já disse em outras reuniões. Os donos que cuidem deles, porque não me responsabilizo pelo que puder acontecer se entrarem no meu jardim”.

“Os donos ou os cachorros?” Flavio Augusto tenta, de novo, quebrar o clima pesado.

“Olha só. O Silas tem razão. Talvez seja a saída mesmo, já que os donos desses cachorros, pelo jeito, nem ligam. Deixam as portas de casa sem atendimento e os bichos saem pelo condomínio desacompanhados, sem coleira nem nada”. Marco Aurelio não aponta nomes, mas todos sabem de quem ele está a mencionar. Menos Plauto, que não tem ideia de como retomar o controle da reunião. E Flavio Augusto sequer imagina ser o alvo do embate.

Pompeu resolve dar uma surra naquele moleque. Vai lhe fazer bem, nem que seja para tirar aquele sorriso cretino da sua boca. “Sabe, Silas, minha senhora já mandou foto parecida com essa aí, que eu mostrei a vocês, para a esposa do senhor Flavio, depois de um passeio do cachorro dele pelo nosso jardim. E sabe o que aconteceu? Nada. Absolutamente nada. Nem resposta tiveram a dignidade de dar. Aliás, senhor Flavio, pelo seu comportamento nesta reunião começo a desconfiar que lhe falta discernimento para entender o que acontece neste condomínio. De qualquer modo é o cachorro de vocês, seu Flavio, que vive solto e somos nós que temos que juntar as porcarias dele. Dia sim, outro também”.

Flavio Augusto ouve o acesso de cólera de Pompeu, sem esboçar reação. Embora assustado com a investida, procura ser firme em sua resposta. “Seu Pompeu, isso não é possível. O cachorro lá de casa é treinado, com coleira antipulgas e as minhas crianças sabem que, se ele sair sozinho por aí, volta para o sítio. Ele faz as coisas dele no nosso terreno e só ali. Até porque é muito raro ele sair do nosso terreno. Além do mais, eu não sou o único que tem cachorro no condomínio, não é verdade? Fora os cachorros de parentes que, de vez em quando aparecem por aqui. Como os dos netos do senhor Julio Cesar, não é mesmo?”

“O que você está insinuando, rapaz? Que os meus netos não têm educação?”

“Não mesmo, seu Julio, falei isso só para lembrar a todos que cachorro não faz distinção entre a grama do dono e a dos vizinhos”.

Graco faz sinais a Plauto, para que retome a coordenação dos trabalhos. Mas o administrador está entretido em anotar todos os detalhes daquele embate, entre cavalheiros apesar de um tanto inflamado. Acha interessante como colocam seus pontos de vista durante as discussões. Sente que aprenderá muito à frente dos assuntos daquele condomínio e que terá boas experiências a contar aos colegas da firma.

Pompeu percebe a intenção de Graco e toma a palavra. “Senhores, nada como uma conversa sadia para deixarmos tudo às claras. Sem ressentimentos. Proponho, senhor Plauto, a votação da seguinte proposta: câmeras no condomínio inteiro e não só na quadra, em uma extensão do que foi sugerido pelo senhor Flavio. Assim, resolveremos o vandalismo na quadra e a sujeira dos cachorros”. Flavio Augusto se sente reconfortado pela deferência, ainda mais feita por um amigo do seu avô.

Silas aquiesce com a cabeça. “E deixo avisado a todos: cuidem dos seus bichos, para que não entrem no meu jardim sem ser convidados”.

“Quem não deve não teme, não é mesmo senhores?” Marco Aurelio faz um sinal com os dedos, concordando com a afirmação de Pompeu.

Graco tenta pedir a palavra; Julio Cesar é mais rápido e desata a aplaudir a proposta do vizinho. “Mais uma vez o bom senso prevalece! Parabéns! Vamos ao próximo item da pauta”.

Plauto está alheio, ocupado em revisar suas anotações.

“Senhor síndico?”

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