10:22O Febeapá está de volta

por Ivan Schmidt

Um dos jornalistas mais importantes que o Brasil conheceu chamava-se Sérgio Porto (1923-1968), nascido no Rio e morto na mesma cidade aos 45 anos, no auge de uma carreira de cronista de absurdos garimpados numa realidade não raro grotesca, para dizer o essencial, assinados com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta.

Alguém sugeriu, com acerto, que Sérgio tinha em Stanislaw o seu alter-ego (ou seria o contrário?), mas a verdade é que poucos jornalistas conseguiram popularizar tanto um codinome, a ponto de que quase todos os livros lançados por ele jamais foram subscritos com seu nome de batismo.

A maior contribuição de Stanislaw para o fertilíssimo anedotário nacional, talvez a nossa arte mais fecunda, está contida nos três volumes do Festival de besteira que assola o país, que a Agir Editora (RJ) reuniu num só em 2006, com ilustrações originais de Jaguar, ou seja, as mesmas das edições dos anos 60 do século passado e prefácio de Millôr Fernandes.

Na orelha do livro o leitor já descobre o que vai saborear a seguir: “Cada caso aqui relatado tem, é claro, personagem e lugar bem concretos, mas a forma de contá-los não conhece tempo ou moda. Impiedoso com a estupidez nossa de cada dia, quase carinhoso com o patético de cada um, Stanislaw criou, a partir da mais crua realidade nacional, um mundo delirante de mal-entendidos e equívocos que funciona como um espelho: ao rir de cada cocoroca, também estamos rindo um pouco de cada um de nós”.

Em tempo: cocoroca era o apelido usado carinhosamente por Sérgio para definir todos quantos se “esforçavam para engrandecer o frondoso absurdo da realidade brasileira”.

No prefácio escrito para a edição da Agir, Millôr Fernandes lembrou, entre outras coisas que Sérgio, além de amigo foi também irmão, ali pelos anos dourados na orla de Ipanema e Leblon: “Por muito tempo foi apenas um gozador incansável de tudo e de todo mundo. Me dava a impressão de que transformava a possível indignação social em matéria escrita e falada”.

Morto precocemente há 47 anos, Stanislaw começou a escrever crônicas humorísticas em 1966, dois anos depois do golpe militar, tendo como personagens óbvios militares obtusos, políticos toscos, funcionários públicos kafkianos e outros “cocorocas”. Para quem não sabe um peixe de tamanho médio abundante em áreas rochosas à beira do mar.

Relendo hoje esses textos sente-se uma falta enorme do carioca de Botafogo, criador dos imortais personagens Tia Zulmira e Primo Altamirando, bem como os informes exclusivos divulgados pela Pretapress e, fora da ficção, pai das “Certinhas do Lalau”, seção de fotos de deslumbrantes vedetes do teatro rebolado que saía junto com a coluna diária, nos últimos anos, publicada na melhor fase da Última Hora, jornal editado por Samuel Wainer.

Em tempos de mandioca, mulher sapiens e Joaquim Silvério dos Reis, a quem se confundiu com os delatores premiados da Operação Lava Jato (vai faltar cadeia!), Stanislaw Ponte Preta teria material para escrever um monte de livros, cada um melhor que o outro, à vista da geração espontânea de sandices a cargo da multidão de beócios que parasita a vida nacional.

No Febeapá 2, Stanislaw conta umas histórias hilariantes sobre a proverbial burrice brasileira, como a do delegado adjunto do 1º Distrito de Anápolis, Goiás, segundo noticiou o jornal Cinco de Março, da referida, que em papel timbrado da Secretaria da Segurança Pública lascou o seguinte atestado de residência: “Atesto, a requerimento da parte interessada, que, o senhor Charles De Gaulle, de nacionalidade: francês, estado civil: casado exercendo a profissão de Presidente da República da França, é residente e domiciliado nesta cidade, à Rua Benjamin Constant, nº 306”.

Esta veio do Recife. O vereador Wandenkolk Wanderley reclamou que no Teatro Santa Isabel, “o único da capital pernambucana, iria se exibir um time de bicharocas, num espetáculo chamado Les Girls”. O vereador, “mais tarde famoso por ser contra a minissaia e calça de rapaz apertadinha na bunda” – berrava na Câmara Municipal: “É inadmissível que o recifense veja o seu teatro, relíquia histórica, transformado em palco onde indivíduos que deviam estar presos, atendendo pelos nomes de Cassandra, Vera, Vanda, Ira, Geórgia e Monique, pretendem exibir um show de travesti”.

“Lembram-se do almirante Pena Boto? Pois voltou. Voltou e deu uma entrevista no aeroporto, dizendo-se a favor da Guerra do Vietnã e declarando que é preciso invadir a China e acabar de vez como Mao Tsé-tung. Bonifácio Ponte Preta, o patriota, vibrou com as palavras do almirante, principalmente em relação à invasão da China”.

Um vereador de Mafra (SC) solicitou no plenário da Câmara que se fabricassem fósforos com duas cabeças, para economizar o palito. Já em Dona Euzébia (MG), a Câmara Municipal tinha sérias dificuldades para realizar a sua sessão de instalação, porque os nove vereadores da Arena que a integram (o MDB não apresentou candidatos), não conseguiram ler o regimento interno e nem a última ata da legislatura anterior.

Em Porto Alegre, o desembargador Oswaldo Barlem, eleito deputado pelo MDB, decidia concorrer à presidência da assembléia gaúcha com uma plataforma racista. Como um deputado de cor, Carlos Santos, pleiteava o mesmo cargo, o desembargador lançava-se candidato e pedia os votos de seus coleguinhas “em nome dos interesses superiores de nossa raça”.

O ministro da Justiça do governo que saía para entrar o novo foi o autor da Lei de Imprensa e do amontoado que se constituiu na nova Constituição. A publicação antecipada do que seria a nova Lei de Imprensa fez chiar até o dr. Julio Mesquita, diretor de O Estado de S. Paulo, matutino paulista conhecido na intimidade pelo apelido de Estadão.

Por causa da bronca, dona Lili, esposa do ministro Carlos Medeiros e Silva (da Justiça, como ficou dito – e sempre é bom frisar porque tem muito ministro que a gente esquece), afirmou, entre amigos: “Bem que eu disse ao meu marido para fazer a Lei de Imprensa antes da Constituição, porque assim ele arrolhava essa imprensa e podia fazer a Constituição em paz”. Nessa ocasião e sobre tal afirmativa, Primo Altamirando tinha uma observação muito feliz: “Rolha no gargalo dos outros é refresco”.

O secretário de Educação e Saúde do Estado do Rio – Hélio Solon de Pontes – em visita a um entreposto de pesca no litoral do Estado ficou tão impressionado com o que viu que revelou aos circunstantes: “Vou propor ao governo a fundação de uma Universidade do Peixe”.

E assim vai ao longo das quase 400 páginas dos três volumes. O curioso é que o célebre humorista carioca não chegou a atinar, a seu tempo, com as superlativas qualidades da mandioca e da mulher sapiens. E tampouco com a maldição lançada sobre Joaquim Silvério dos Reis, apesar de ter sido o autor do celebérrimo “Samba do Crioulo Doido”.

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