5:44O homem que sabia das coisas

por Ivan Schmidt 

Paulo Francis (1930-1997) foi um dos jornalistas brasileiros mais importantes da segunda metade do século 20, exatamente num período em que o país contava com  monstros sagrados do calibre de Millôr Fernandes, Joel Silveira, Samuel Wainer, Ivan Lessa, José Lino Grünewald,  Antonio Callado, Cláudio Abramo, Carlos Heitor Cony e Alberto Dines, para citar uns poucos.

Filho de família alemã de classe média, educado em colégios católicos tradicionais do Rio, o futuro intelectual começou a carreira como ator de teatro a convite de Paschoal Carlos Magno, no Teatro do Estudante, mas logo passou a escrever críticas sobre artes cênicas nos extintos Diário Carioca e Correio da Manhã. Comecei a ler Paulo Francis na Última Hora pré-golpe de 1964, jornal fundado por Samuel Wainer para defender os governos Getúlio e Jango, ao que se dizia à época com régio financiamento do Banco do Brasil. Val Marchiori já estava na jogada?

Contudo, a notoriedade veio com a coluna “Diário da Corte”, escrita duas vezes por semana entre 1977 e 1996, de Nova York onde morou por 25 anos, para a Folha de S. Paulo, Estadão e Globo (que passou a publicá-la em 1992), além das centenas de artigos e ensaios impressos em muitas outras publicações de renome.

Publicou também romances, compilações e memórias. Um desses livros tem adequadamente o mesmo título da coluna e saiu dez anos após a morte do autor pela editora Três Estrelas (grupo Folha), do qual se desligara em 1989 amuado pela ácida polêmica com o então ombudsman Caio Túlio Costa, em função da disputa presidencial entre Lula e Collor.

O livro em questão foi resenhado por Augusto Nunes para a revista Veja, que entre outras coisas afirmou serem os textos de Paulo Francis tão oportunos e atualizados como se tivessem sido produzidos na véspera. E não perderiam nada de seu valor se tivessem sido deixados para o dia seguinte.

A percepção de Augusto Nunes fica ainda mais pragmática ante o quadro atual do interminável conflito árabe-israelense, aliás, uma das entradas constantes na temática de Francis. A propósito, fui reler por esses dias um ensaio de Paulo Francis incluído no luminoso livro Certezas da dúvida (Paz e Terra, RJ, 1979), coletânea de matérias publicadas em jornais e revistas como Última Hora, Tribuna da Imprensa, Diário Carioca, Correio da Manhã, Diners, Senhor, Bula, Realidade e Pasquim, entre outros.

O primeiro aspecto a chamar a atenção é a capacidade de Francis de enxergar e expor com clareza nuanças que, na maioria das vezes, a outros poderiam passar despercebidas. Jornalista experimentado, observador atento das mudanças de comportamento e crítico impiedoso do establishment – política internacional, economia, sociedade e artes eram os campos em que seu intelecto fluía, para o bem ou para o mal, com a agilidade de um esgrimista.

Certa vez li uma observação sobre Francis feita pelo precocemente falecido Daniel Piza, que faz tanta falta quanto seu ídolo, organizador de outro livro importante sobre a produção jornalística do carioca nascido em Botafogo, que desprezava coisas como o samba e futebol  – Waaal o Dicionário da Corte de Paulo Francis, que a Companhia das Letras editou em 1996.  A anotação de Piza, também excelente jornalista de cultura, era sobre a quantidade de livros que lera estimulado pelas referências feitas pelo autor de Cabeça de papel. Creio que o mesmo ocorreu com muitíssimos leitores, entre os quais figuro e, garanto que jamais me frustrei com nenhuma dessas muitas dicas.

Decerto foi a familiaridade de Francis com o cenário mundial que lhe facultou escrever com versátil objetividade – sua escrita parecia uma conversa de amigos num bar – sobre problemas do comunismo, sionismo ou feminismo ou, por exemplo, ilustrar o leitor com informações sobre um romance de Doris Lessing ou um filme de Glauber Rocha.

Em Certezas da dúvida, cuja primeira edição é de 1970, o leitor mergulha numa corrente de toques premonitórios de Paulo Francis, que muitos anos depois dariam a Augusto Nunes, mesmo comentando outro livro, a oportunidade de avaliar a visão de mundo caracterizada por um rigor muitas vezes, com má intenção, confundido com arrogância, catastrofismo ou, na mais ignóbil das hipóteses, deboche, inveja e vontade de aparecer.

Francis esteve entre os poucos que tinham o dom de escrever análises equilibradas, documentadas e, acima de tudo, prudentes, sobre temas internacionais rumorosos como o já lembrado conflito árabe-israelense. A propósito, no ensaio lembrado “Guerra certa”, o jornalista dizia que “a ignominiosa derrota infligida por Israel aos árabes na guerra dos seis dias continua provocando explosões dos regimes semifeudais da região. Só assim se entende a presente crise no Líbano, que era outra cunha ocidental no Oriente Médio. O mundo árabe, por enquanto, é um mito propagandístico, semelhante à América Latina. Esse ‘mundo’ não passa de um conglomerado de desiguais, tendo como denominador comum apenas a miséria e o atraso profundos, piores do que os seus correspondentes no Nordeste brasileiro”.

Trinta e cinco anos depois do aparecimento do livro e quase 50 do conflito que envolveu além de Israel, Síria, Egito, Jordânia e Iraque, no qual o exército israelense pulverizou ainda em terra a força aérea egípcia, única forma que os referidos países teriam de mostrar alguma resistência à máquina de guerra de Telavive, são escassas as razões para discordar das constatações de Francis.

Leiam o parágrafo seguinte e verifiquem a acuidade do que pensava pouco depois do final da guerra dos seis dias, que se estendeu de 5 a 10 de junho de 1967: “Nessas condições, Israel civilizado e motivado pela auto-sobrevivência e tecnologicamente desenvolvido, sempre derrotará os árabes divididos. Que sentido faz uma aliança de Nasser e Hussein? O oportunismo demagógico do primeiro e o desespero do segundo. Nada mais. Na presente concepção política de Israel só lhe resta cair no mar ou a vitória periódica, punitiva, sobre os adversários. Como estratégia de longo prazo, porém, isso é suicídio”.

Não é preciso ir longe para se certificar do que tem acontecido desde então com as intermitentes tentativas de países e/ou organizações árabes de cumprir, até agora sem sucesso, a intenção de riscar Israel do mapa.

Como se tivesse a propriedade de ver o futuro, Francis antecipou a ocorrência da chamada Primavera Árabe e o aparecimento do próprio Estado Islâmico, ao prognosticar que “forças verdadeiramente revolucionárias estão surgindo no mundo árabe, indiferentes ao jogo das grandes potências. É uma questão de tempo a luta violenta da guerrilha, contrariando as táticas sutis de americanos e soviéticos para manter o Oriente Médio dividido e sob seu jugo”, concluindo com acerto: “Sofrerão terrivelmente com isso os árabes e israelenses. Estes, principalmente, estão num beco sem saída. Atingiram o ápice da força e prestígio na geopolítica absurda que se propuseram e que também lhes foi imposta pelas circunstâncias. Uma situação dramática, no sentido exato do termo. E a luz no fim do túnel, nesse caminho, simplesmente não existe”.

Em atenção aos leitores mais jovens que não tiveram a chance de ler Francis em jornais ou revistas, pinço aqui e ali no dicionário organizado por Daniel Piza uns poucos exemplos de sua forma de pensar e se expressar.

“A televisão é a força mais subversiva de nossa sociedade, ainda que inconscientemente. Na televisão se veem riquezas e estilos de vida que o vulgo desconhecia, ou de que só ouviu falar, e que agora vê entrar na sua sala de estar. E a mística da televisão, do comercial, é que tudo é possível para todo mundo, um ledo engano e não menos leda ilusão”. (FSP, 18/1/90).

“Cristo era moderado. Afinal, adorou que as mulheres lhe lavassem os pés naquelas bodas e, ao ser criticado, por Judas, que disse que todo aquele luxo poderia ser passado aos pobres, deu uma resposta que até hoje deve perturbar frei Leonardo Boff: ‘Os pobres estarão sempre convosco’ – o que não me sugere um manifesto da Teologia da Libertação”. (FSP, 14/12/85).

“A morte deve ser como a anestesia geral. Estamos aqui um dia e de repente apagamos”. (FSP, 28/6/90).

“A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição cultural maior do que a que a África toda nos deu”. (FSP, 24/5/90).

“Leia algum dos grandes romances de Machado de Assis. O mais brilhante é Memórias póstumas de Brás Cubas. Para estilo, é o que se deve emular. O coloquialismo melodioso e fluente de Machado. É um grande divertimento esse livro. Eu recomendaria ainda para os que têm dificuldade de manejar a língua Memorial de Aires. É o livro mais bem escrito em português que há”. (OESP, 30/5/91).

“Marx inventou engenhosamente algo que chamava de superestrutura, ou seja, que a classe dominante, quando sem perigo de cair, se torna rarefeita e adquire uma independência cultural, que transcende seus interesses de classe e fala pela humanidade”. (OESP, 30/5/91).

“O único político não jeca, brilhante mesmo, do meu tempo, era Carlos Lacerda” (FSP, 11/11/90).

“Acho Joyce muito chato. Mas é um grande escritor. Que não recomendo a não ser a quem goste muito de literatura. Joyce é para iniciados. Foi um suplício até eu entenderUlisses.” (OESP, 7/4/91).

“Algumas mulheres, como Mary McCarthy, Diana Trilling, Renata Adler e Janet Malcolm, estão entre as maiores jornalista deste século”. (FSP, 8/3/90).

“Quem-o que-quando-onde-como continua o abc do jornalismo. O fino trivial é bem servido se seguindo essa regra. É o que a maioria das pessoas quer. Notícias, escritas de maneira clara, com descrição específica do que possa interessar. Mas jornalismo cultural são outros quinhentos mil réis. Requer expertise”. (OESP, 30/5/93).

“A história da humanidade é não só a história da guerra, como notou Winston Churchill, como uma interessante perseguição, exploração e massacre dos mais fracos pelos mais fortes. A Antiguidade sobreviveu do sangue e ossos de milhões de escravos. O túmulo anônimo dos escravos que construíram as pirâmides no Egito não é tão chocante quanto Auschwitz, ou o cemitério de Leningrado, mas me impressionou mais pela frieza, pela falta de drama, pela desumanidade ‘natural’ dos faraós”. (FSP, 6/3/82).

Creio ser o suficiente.

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2 ideias sobre “O homem que sabia das coisas

  1. Célio Heitor Guimarães

    Não só ótimo, Bitte. Ivan é hoje a melhor cabeça-pensante da imprensa paranaense (se não nacional), seja ela escrita, falada, transmitida, projetada, blogada ou psicografada. Grande Ivan! E grande Zé Beto, que em boa hora o acolheu!

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