por Célio Heitor Guimarães
Eu não conhecia o gaúcho David Coimbra. Culpa minha, claro. Encontrei-o, por acaso, na gôndola-estante da Saraiva entre os autores nacionais. Aí fiquei sabendo tratar-se de um jornalista e autor de grande sucesso, capaz de produzir tanto um romance histórico, bem recebido pela crítica, como “Canibais – paixão e morte na rua do Arvoredo”, quanto uma bem-humorada tese a respeito da formação da civilização, como “Uma História do Mundo”. Mas tenho a impressão que é na crônica que David mais se realiza. O seu texto é leve, enxuto, coloquial, próprio da crônica; o estilo é envolvente; e a facilidade de comunicação, explícita e bem gaúcha.
No livro que tenho nas mãos, “As Velhinhas de Copacabana e outras 49 crônicas que gostei de escrever”, edição da também riograndense L&PM Editores, David Coimbra oferece momentos de prazer ao leitor, uma leitura agradável, que alegra e faz bem à alma.
O amigo que lê estas mal traçadas quer uma prova? Encontro-a na crônica “Tire o cavalo da chuva”, que aqui reproduzo como homenagem ao autor.
Conta Coimbra que, certo dia, o filho dele, Bernardo, o seu pequeno “Pocolino”, “na franja dos seis anos”, “choramingava por motivo reles, sentado à mesa de jantar”. David censurou-o:
– Se tu pensas que vai ganhar algo fazendo manha, pode tirar o teu cavalinho da chuva!
Diz que o alerta funcionou. Ou quase. Revela:
“A manha estancou, seguimos adiante com o jantar, mas, um minuto depois, já refeito, ele fitava o vazio, pensativo, o cotovelo fincado no tampo da mesa, o garfo na mão apontado para o teto como um mastro de bandeira. Ficou assim por um momento. Então, olhou para mim com as sobrancelhas franzidas de concentração e balbuciou:
– Papai…
– Que foi?
– Eu não tenho cavalinho.
“Levei alguns segundos para entender a que ele se referia. Aí sorri e expliquei:
– Ah, é só uma forma de falar.
“Seus olhos continuaram me fitando debaixo de uma ruga que a seriedade da questão cavou-lhe na testa.
– Mas, papai, se eu tivesse um cavalinho, por que tinha de tirá-lo da chuva? A chuva faz mal para os cavalos?
“Suspirei.
– Não, filho, já disse: essa é só uma figura de linguagem. Uma imagem que a gente usa para dizer que outra pessoa deve desistir de algo.
– Certo. Mas por que o cavalinho deve sair da chuva? Eu já vi cavalo na chuva. Ele não parecia triste. Ele pode ficar gripado?
– Olha… – eu já estava confuso com todas aquelas perguntas, precisava de tempo para pensar. Mas ele não me deu tempo. Prosseguiu:
– Eu não sei se ia conseguir tirar um cavalo da chuva, papai. Eu sou pequeno e o cavalo é grande. Como é que a gente faz pra tirar um cavalo da chuva?
“Todos aqueles questionamentos agropecuários me deixavam atrapalhado. Olhei para ele. Ele ainda me fitava com gravidade, esperando a resposta.
– O cavalo, a chuva, nada isso tem importância – tentei, já um pouco agastado. – O que importa é o sentido do que eu queria dizer. O sentido da expressão. Quando falei aquilo, falei pra que tu desistisse de algo. De fazer manha. Entendeu? Agora come.
“Ele deu umas mastigadas no brócolis, mas não tirou o ar reflexivo do rosto. Estremeci quando ele me encarou de novo.
– Papai…
– O que foi?
– Se eu tivesse um cavalinho…
“Foi um longo jantar”.
Gostou, leitor? Pois esta é apenas uma das crônicas do livrinho de David Coimbra. Há outras 49 à sua espera.