16:43A foto vive

por Pedro Karp Vasquez*

 

Apesar de coincidir com o fim de uma tradição de século e meio, vivemos hoje um dos períodos mais ricos e empolgantes da história da fotografia, equivalente aos primórdios, quando as invenções também se sucediam sem interrupção. A transição da fotografia tradicional (de base química e suporte de película) para a imagem digital teve início em 1973, quando a Fairchild Imaging produziu o primeiro CCD (dispositivo que converte imagens para para valores digitais) em escala comercial. Tinha 0,01 megapixel!

O processo ganhou velocidade nos anos 1990 com a ampla difusão das câmaras digitais, e deve terminar na corrente década, quando os telefones celulares sepultarem as câmaras de foto e vídeo amadoras de vez. É o fim de uma época e o nascimento de outra, de dimensões incalculáveis até para inventores e cientistas.

Quem, ao assistir ao lançamento da Mavica da Sony em 1981 (com resolução de 0,3 megapixel), poderia antecipar o surgimento, duas décadas depois, de um telefone com 41 megapixels? Mas aí está o Nokia Lumia 1020… Não faltaram, nesse meio tempo, as aves de mau agouro e os catastrofistas para anunciar “o fim da fotografia”, provocado pela imagem digital, ou o “fim da verdade fotográfica”, causado pelo Photoshop.

Mas a fotografia nunca esteve tão viva e, por outro lado, a suposta verdade fotográfica nunca existiu. A fotografia sempre teve seu lado falso, tendencioso e mentiroso (em outras palavras: humano), ao mesmo tempo em que é dotada de insuperável capacidade de reprodução fidedigna do mundo visível. Nitidez e precisão nada têm a ver com ética e verdade, e o pouco que se perdeu foi amplamente compensado pelo muito que se ganhou.

Na década de 1920 (quase um século atrás), László Moholy-Nagy, o célebre professor e teórico da Bauhaus, afirmou que “o analfabeto do futuro será aquele que não souber fotografar”. Palavras proféticas. Primeiro meio de imagem técnica, a fotografia esteve na origem de todas as tecnologias que a sucederam: das mais prosaicas, como a xerox, às mais fundamentais, como o raio-x e a astrofotografia, que possibilitou ver onde estamos, ao mesmo tempo em que já se começa a vislumbrar de onde viemos e para onde vamos.

Mas e a “fotografia de verdade”? Acabou? Não. Renovou os caminhos para a película e ressuscitou processos históricos como a daguerreotipia ou a ferrotipia. Isso tem se dado sobretudo com artistas plásticos de vanguarda, como os ligados à Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Sem esquecer, é claro, de Francisco Moreira da Costa e suas oficinas de daguerreotipia em Lumiar.

No Parque Lage nasceram alguns dos nomes mais expressivos das artes visuais brasileiras que trabalham com fotografia, como Rosangela Rennó e Rochelle Costi, antecedidos por Alair Gomes, Miguel Rio Branco ou Anna Bella Geiger, que ensinaram e/ou ali expuseram na época em que Rubens Gerchman era diretor. Hoje, Denise Cathilina ensina cianotipia, técnica criada na década de 1840 pelo astrônomo e matemático inglês Sir John Herschel, que sugeriu o uso generalizado do termo “photography” para designar os diferentes processos então existentes. Termo depois apropriado por aquela que nasceu como imagem digital, passou a ser chamada de fotografia digital e virou a “verdadeira fotografia”, com seus penduricalhos (como “fotografia analógica” ou “fotografia pré-digital). Neste sentido, não há nada a fazer. É similar à “livraria de tijolo”, surgida após o advento das livrarias virtuais.

Seja como for, a fotografia de película resiste e insiste, encontrando novos caminhos, como o da Lomography, que ressuscitou diferentes câmaras e formatos de filmes, das Instamatic (as “xeretas”), à Lubitel russa (semelhante à Rolleiflex), ou as panorâmicas, como a Spinner 360º.

Assim como ocorreu na Inglaterra — onde a rainha Victoria e o príncipe Albert eram entusiastas da nova invenção —, no Brasil a fotografia se beneficiou da proteção da autoridade máxima da nação, o imperador Pedro II, primeiro fotógrafo de nacionalidade brasileira. Assim, em berço esplêndido durante o século XIX, a fotografia brasileira vicejou e viceja hoje nos ambientes mais variados e desfavorecidos, sobretudo nos encontros de Inclusão Visual do Rio de Janeiro, realizados no âmbito do FotoRio, um fórum privilegiado de discussão e difusão. Eloquente celeiro de fotógrafos, a Favela da Maré revelou nomes como os de Ratão Diniz ou do Coletivo Fotográfico Pandilla, graças ao projeto Imagens do Povo, de quase uma década, e que tem até um espaço próprio de exposição, a Galeria 535. Não se pode esquecer do Mão na Lata, criado por Tatiana Altberg em 2003, no âmbito da Redes de Desenvolvimento da Maré, como um grupo de pinhole (fotografia tirada com câmaras feitas à mão).

Ano passado os alunos lançaram o livro “Cada dia meu pensamento é diferente”, baseado na obra de Machado de Assis, nascido no Morro da Providência, o primeiro a se chamar “favela”. Machado, o escritor oitocentista que soube vencer as barreiras sociais por intermédio da literatura, teve sua obra revisitada por 15 crianças moradoras na favela do século XXI, que porventura podem encontrar na arte e na literatura a via de escape e de superação da adversidade

No establishment, o brasileiro Sebastião Salgado é hoje o fotojornalista mais conhecido do mundo, associado no imaginário coletivo à grande tradição do preto e branco. Muitos ignoram que há muito Salgado já abandonou a mitológica Leica, que inaugurou o universo da fotografia em 35 mm, pelas câmaras digitais. Todo o espetacular projeto “Gênesis” foi feito em digital. Salgado opera na contramão do diálogo entre a fotografia clássica e a atual, pois agora realiza a captura de imagem com o processo digital e só depois, eventualmente, produz um negativo convencional para a realização das ampliações em papel fotográfico.

Outro exemplo fascinante é o de Mestre Júlio, tema do filme “Retrato Pintado”, de Joe Pimentel, com seus personagens extraídos retratos em 3 x 4: ele trocou as tintas e os pincéis pelo computador e pelo programa Photoshop, tendo percorrido assim todas as etapas da história da fotografia. É o fim de uma era, mas não o fim da fotografia, que se reinventa a cada momento em que alguém pressiona o disparador de uma câmara ou de um celular.

A Anatel afirma existir hoje no Brasil cerca de 267 milhões de celulares ativos, para uma população estimada pelo IBGE em 198,7 milhões. Ou seja: temos hoje no Brasil mais fotógrafos do que gente…

É ou não é o melhor dos mundos?

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/a-foto-vive-10869355#ixzz2m9hxk3ml

*Escritor e fotógrafo, responsável pela criação do Instituto Nacional de Fotografia da Funarte e do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas Tecnologias do MAM/RJ 

* Publicado no jornal O Globo

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