8:15O pão

Ilustração de Theo Szczepanski

 

por Rogério Pereira

 

Na cozinha encontro um pão sobre a mesa. De contornos bem definidos. A casca levemente tostada. O miolo macio e branquinho. Ao lado, a sacola plástica com os amorfos pães da padaria da esquina. De onde saíra aquele pão caseiro? A manhã projeta uma luz fraca pela janela. Encho a caneca de café com leite. Busco o requeijão na geladeira. O pão enorme no centro da mesa me traz boas lembranças.

Toda semana, a mãe me convocava para tocar o cilindro. Na mesa de fórmica — comprada com desconto na loja popular devido a uma lasca num canto —, ela espalhava farinha de trigo e sovava bem a massa. Naquela época, a mãe tinha saúde. Não imaginávamos que numa tarde nublada o câncer entraria pela janela feito chuva em casa abandonada. As mãos grossas, os dedos nodosos, alisavam a massa sem descanso. Ao fim cortava a esfera branca em quatro ou cinco pedaços. Filho, vem tocar o cilindro. Era uma maquineta rudimentar, mas eficiente: dois cilindros metálicos paralelos movidos por uma manivela. Com o entusiasmo da infância, agarrava-me à manivela e a girava com delicada brutalidade. A mãe espremia a massa por entre os cilindros. A massa fazia várias viagens. A cada uma delas, saía mais lisa. Após algum tempo de trabalho, cinco pães sobre a mesa. Protegidos das moscas por uma toalha de pano, eles cresciam, engordavam. Em seguida, eram levados ao forno a lenha. Eu não gostava de pão caseiro. Queria o pão de padeiro. O pão comprado no bar do Garimpeiro — cujo dono nunca vira um diamante e, tampouco, sabia onde ficava Serra Pelada.

O fio da faca é somente uma lembrança. Duvido da sua eficácia. Cravo a lâmina com vigor. Corto dois pedaços largos. Passo requeijão. Na infância, apenas margarina sem sal. Uma margarina ruim, barata, de péssima qualidade. Não conhecíamos requeijão. Requeijão é melhor que margarina. Fazer pão é melhor do que fazer quimioterapia. Tocar o cilindro é melhor do que limpar a traqueostomia. Ter requeijão na geladeira nem sempre é certeza de que a vida melhorou.

Lentamente, mastigo o pão caseiro encontrado na cozinha. O sabor e a consistência são ótimos. A manhã ganha força pelo vidro embaçado da janela. São quase oito horas. Logo, estarei na estrada. A mãe ficará por aqui, zanzando pela casa. Uma mosca sem asas no azulejo frio. Se tivesse uma toalha de pano, cobriria a mãe todos os dias ao sair de casa. E se ela crescesse, ganhasse outros contornos? Não sei qual é a proporção de ingredientes para se fazer um pão: farinha, ovos, leite, azeite, fermento, açúcar e sal. Não sei as medidas para que a massa cresça e se transforme em algo mastigável. Não sei quase nada. Sei apenas que, em breve, terei de comprar um caixão para a mãe. Tenho dinheiro para comprar requeijão e caixão. No velório, serviremos pão caseiro e margarina.

Deixo a caneca na pia. Limpo as migalhas da toalha plástica. Jogo os restos no lixo. Abro a porta da cozinha. Sempre que acordo, a mãe está encorujada no sofá. O câncer a transformou numa estranha. Não fala. Movimenta-se com a lerdeza das lesmas. É uma apenas uma réstia distorcida da mulher ríspida e rude que tentara colocar os filhos no trilho. Todos descarrilamos. Ela também.

A mãe fez aquele pão? Ela diz que sim com a cabeça. Está ótimo. A mãe esboça um sorriso, que nunca se completa. Subo a escada em direção ao quarto. Logo, estarei na estrada. Tocar o cilindro é desnecessário.

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