12:04Os mortos que estão vivos

por Sergio Brandão

Meu pai não morreu e ainda vive maritalmente com minha mãe. Quem me contou isso foi minha vó, que morreu na semana passada. Foi uns dias depois do seu enterro. Quando a gente se desliga deste mundo, também precisa desligar os vínculos oficiais. A sociedade precisa documentar o seu desencarne, se isso não for feito, você continua valendo até que agum familiar precise de alguma coisa que por azar tenha o seu nome em algum documento. Pronto, aí você é capaz de descobrir que tem um monte de morto vivo por aí. Tem uma indústria riquíssima se fartando de ganhar dinheiro com isso. São os especialistas em assinar qualquer documento com a assinatura igualzinha do morto, especialmente autorização para pagamento e até cheques quando é o caso. Como disse lá em cima, meu pai não foi tão longe assim, só continuou casado com minha mãe mais três anos depois de morto. Nem o atestado de óbito dele foi capaz de desfazer este casamento. Pensa você que é só o médico legista dar uma olhada, assinar um papel, registrar isso em cartório e num passe de mágica tudo se desfaz? Claro que não! E os papéis do casamento que foi feito com testemunha e tudo o mais? Se não é a minha avó Inês me contar, não saberia. Na verdade a história começa bem mais atrás, com meu avô, Ascendino, morto nos idos de 1940 e alguma coisa. Militar que deixou uma pensão e assistência médica para a minha avó, que agora deixa para suas filhas. E até que prove o contrário, para fugir da tal indústria dos falsos documentos e falsas assinaturas, a gente se obriga a reviver etapa por etapa, cartório por cartório, até finalmente provar que meu pai está mesmo morto e que aquele óbito é verdadeiro e que consequentemente sua certidão de casamento ganha registro novo, atualizado e minha mãe é oficialmente considerada viúva. Meu pai morreu em 23 de junho de 2009. Quase três anos depois, hoje tive que fazer um novo enterro pra ele. Desta vez só nós dois. Foi pior. Tive que anular toda a história oficial que ele contruiu. Fiquei imaginando: com que autoridade ponho eu as mãos nesta certidão de casamento agora para contar uma outra história. Olhando para aquele papel, no famoso 4 de fevereiro de 1955, com todos os presentes e testemunhas, cheguei a sentir o cheiro da festa. Dos bolos, dos salgados, das senhoras perfumadas. Foi na residência de uma tia, na rua Parnaíba, que hoje nem existe mais. Isso tudo era lembrado por ele todos os anos. Não havia um 4 de fevereiro que deixasse escapar .” Hoje faz tantos anos de casamento”, dizia ele. E podia sentar porque lá vinha mais uma história. Todo aniversário de casmento ele lembrava de uma história diferente daquele dia . E, hoje, vou lá e meto o bedelho para dizer que aquela certidão ganha um fato novo. Ferida difícil de cicatrizar essa. Passa um tempo e lá vem um fato para mexer na casquinha de novo. Olho lá fora e vejo e tempo fechando. Já cai uma leve garoa. Estava assim naquele 23 de junho de 2009.

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.