19:39Oração do chargista que é cronista

Segue o discurso de posse feito ontem à noite por Dante Mendonça na Academia Paranaense de Letras. Para quem se interessa em conhecer um pouco mais da história da cultura deste Estado, contada com bom humor e sabedoria. Confiram:

Com a devida licença de cronista, proponho que Curitiba comemore dois aniversários.
O primeiro, 29 de Março de 1693, a criação da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. O segundo, 27 de dezembro de 1971, a data de inauguração deste Teatro do Paiol. O antigo paiol de pólvora que representa a refundação de Curitiba, como diz o painel que está na sala ao lado:
“Símbolo cultural e histórico, o Teatro do Paiol foi um marco das transformações urbanas e culturais vividas pela cidade a partir da década de 70”.
Pertenço à geração Paiol.
Meses depois do poeta Vinícius de Moraes abençoar este palco com algumas gotas de uísque…
(o seu “cachorro engarrafado)
… montamos aqui uma peça teatral de Manoel Carlos Karam.
Bife, no jargão do palco, é um texto longo. Do tamanho de um filé duplo. Na noite de estreia, a jovem e iniciante atriz tinha no papel um bife com a biografia de Carmen Miranda:
“Nascida em Marco de Canaveses, Portugal, em 9 de fevereiro de 1909, Maria do Carmo Miranda da Cunha era mais conhecida como Carmem Miranda. Filha de um barbeiro, ganhou o apelido de Carmen no Brasil, graças ao gosto que seu pai tinha por óperas”.
E assim seguiria o texto, terminando com o colapso cardíaco fulminante que matou Carmen Miranda no mês de agosto de 1955, aos 46 anos de idade.
Assim seguiria o texto, se o pai e a mãe da jovem atriz não estivessem sentados na primeira fila.
Bem aqui!
Com o teatro em blecaute, a estreante ajoelhou-se a dois palmos da primeira fila e, quando o iluminador Beto Bruel disparou o spot-light sobre aquele rosto angelical, a primeira frase saiu assim:
Nascida em Marco de Canaveses…
Meu pai! Minha mãe!
O bife ficou atravessado na garganta.
Num átimo, correram lágrimas naqueles olhos de estreia que não paravam de piscar.
A mãe, sentada a dois palmos, abraçou a filha. O pai, enlaçou as duas. O silêncio falou mais alto… e o público emocionado aplaudiu mais uma das cenas absurdas do teatro experimental de Manoel Carlos Karam.
Parece que foi ontem.
Karam escrevia e Beto Bruel iluminava uma trupe que fazia de tudo um pouco.
Parece que foi ontem. Com essa intimidade entre palco e plateia – uma das paixões do Paiol – sinto os olhos marejados daquela atriz estreante.
Hoje estou no papel da moça, estreando na Academia. 
Infelizmente, na primeira fila não vejo o meu pai. Motorista de caminhão, certo dia tomei coragem e fui sincero com ele:
-Vou ser cartunista!
– Cartunista? O que é isso? – replicou Lauro Manoel Mendonça.
Ele queria que eu fosse advogado.
– Meu filho, nada impede que você seja artista e advogado ao mesmo tempo.
Se em 1969 meu pai conhecesse o jovem René Dotti, diria ele:
– Mire-se no exemplo do doutor René. Foi um grande ator de teatro. Hoje é o grande advogado dos presos políticos.
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Também não vejo minha mãe na plateia.
Cremilda Tridapalli, a pintora que em 1970 me chamou a Curitiba com um convite para estudar pintura com Darel Valença no Festival de Inverno de Ouro Preto.
Fui, e na volta virei soldado de um tal de General Picasso de triste memória. Depois perguntem a René Dotti e Eduardo Virmond quem foi o General Picasso.
Os advogados conheceram bem suas obras de arte nas dependências da Quinta Região Militar.
Ao lado de tantos outros amigos, vejo na plateia os cartunistas. Os anfíbios do traço e do texto.
Solda conheceu minha mãe. Em 1972, eu estava comendo ameixas no telhado da garagem, quando apontou na esquina um rapaz de minha idade que nunca tinha visto antes. Nem mesmo com os cabelos mais curtos.
– Você é o Dante!
– E você é o Solda! – confirmei.
Com minha mãe fomos comer polenta com galinha, e nunca mais largamos os ossos do ofício de cartunista.
O também poeta Luiz Antônio Solda está sentado numa dessas cadeiras desenhadas pelo arquiteto Sérgio Rodrigues, mas sabemos todos que na Academia ele poderia ocupar a cadeira 32, antes pertencente ao chargista, poeta e cronista Alceu Chichorro, o primeiro híbrido desta Academia.    
Na metade do século passado, Chichorro era a grande celebridade de Curitiba, com seu personagem Chico Fumaça. Tanto quanto hoje é celebrado o cartunista Tiago Recchia, com Los 3 Inimigos.
Certo dia, Chichorro paquerava na Rua XV quando o galante fez uma gracinha atrevida para uma senhorita. Ela respondeu:
– Seu cachorro!
E a resposta do cartunista famoso:
– Cachorro, não! Chichorro!
Falecido em 1972, conheci Chichorro pessoalmente. Durante seus últimos anos de vida, passava as tardes na Rua das Flores apreciando a paisagem feminina.
Aliás, uma paisagem que só trocava pela paisagem de Guaratuba. Onde ele não passava o verão, passava o inverno. Se hoje fosse feita uma eleição para escolher o mais legítimo dos curitibanos, Alceu Chichorro seria meu candidato.
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Doutora Clotilde Germiniani, no seu recente discurso de posse nesta Academia, lembrou que os franceses têm uma expressão curiosa para designar atividades paralelas. O nome é “violon d’Ingrès”. Violon é violino. Jean-Auguste Dominique Ingrès foi um celebrado pintor e desenhista que tocava violino nas horas vagas. Ele tinha o maior orgulho de sua habilidade musical. Mas os outros achavam que o seu grande talento de pintor já deveria ser o bastante. 
Millôr Fernandes, Ziraldo, Henfil, Alceu Chichorro, Francisco (Pancho) Camargo, Solda, Benett e Tiago Recchia. O escritor e pintor Nelson Padrella. Valêncio Xavier, que até poderia ter ilustrado seus próprios livros. O escritor, cartunista e saxofonista Luiz Fernando Veríssimo. O cineasta e desenhista Fellini. Jules Feiffer, um dos mais célebres cartunistas e roteiristas americanos. Ou o argentino Fontanarossa.
Destes e muitos outros insatisfeitos, essa parece ser a sina dos cartunistas: não se contentam com o que deveria ser o bastante.
Avisto daqui a professora Cassiana Lacerda.
Doutora da Lapa e da literatura paranaense, na sexta-feira retrasada fizemos o percurso do novo ocupante pela gênese da Cadeira Número UM: Antônio Vieira dos Santos, o fundador; e Rocha Pombo, o patrono desta cadeira cujo primeiro e último ocupante foi Walfrido Pilotto.
Pelo caminho da Graciosa, fomos ao encontro de Antônio Vieira dos Santos.
No Instituto Histórico de Paranaguá conheci os dois volumes originais da “Memória Histórica, Chronológica, Topográphica e Descriptiva de Paranaguá e seu Município”, manuscritos tombados pelo Patrimônio Estadual em 2002.
Como se fosse pouco conhecer a certidão de nascimento do Paraná, de passagem pelo Rio Nhundiaquara a professora doutora me deu um cursinho intensivo de Rocha Pombo, o idealizador da Universidade Federal do Paraná.
Aos forasteiros, no Paraná serra acima recomenda-se conhecer as Cataratas do Iguaçu e os Campos Gerais. Serra abaixo, o caminho da Graciosa e os trilhos da Serra do Mar, o Rio Nhundiaquara e os manuscritos de Vieira dos Santos.
Não se sabe de qual pedra da sabedoria nasce o Rio Nhundiaquara. Sabe-se, isto sim, que naquelas águas que seguem até a Baía de Paranaguá foram batizadas as grandes inteligências do Paraná.
Antônio Vieira dos Santos nasceu em Portugal, mas parece ter sido batizado em Paranaguá, com as águas do Nhundiaquara. Outro “violon d’Ingrès”, o ilustrador Vieira dos Santos está escondido na caligrafia dos seus originais. E o pintor está escancarado em seu autorretrato, a única imagem que temos do “Pai da História Paranaense”.
Não é um retrato dos mais bonitos. É simplesmente sincero, digamos. Tão franco quanto ao retrato que Vieira dos Santos faz de si próprio na obra “Memórias dos acontecimentos mais notáveis da vida do autor”.
 “Eu, Antônio Vieira dos Santos, nasci na cidade do Porto, na rua de Santo Antônio do Penedo, em sexta-feira 12 de dezembro de 1784. Minha fisionomia é estatura menos que ordinária, grosso de corpo, membros reforçados; rosto redondo, cheio e gordo; faces rosadas, barba preta e cerrada; boca não grande, beiços meios grossos e vermelhos, dentes ralos e largos; nariz direito porém não fino, mas cheio; sobrancelhas pretas arcadas e espaçosas”.
Pelas iluminuras nos originais de sua lavra, pelo autorretrato na tela, ou pelo autorretrato no livro, Vieira dos Santos podia ter sido um cartunista. Como também foi diretor de teatro, conforme o próprio relata na Memória Histórica de Paranaguá:
“Em 19 de junho de 1808 se representou a comédia Porfiar Errando e pantominas dos alfaiates e dos ladrões, função feita à custa dos oficiais inferiores do regimento e de que o autor destas memórias foi o diretor, além de muitos mascarados e outros públicos regozijos com que os paranaguenses festejaram o seu primeiro Monarca”.
Por não se levar muito a sério, bom humor não faltava ao historiador que assim descreveu um monstro da melhor tradição monstruosa que teria apavorado a Baía de Paranaguá no século 18.
Abro aspas para o pai da história:
“O nosso monstro marinho foi morto em 1733 por uma bala que saiu do bacamarte de um tal de Pedro Tavares. Tinha corpo e cabeça de touro; só a cabeça media 80 centímetros de comprimento por metro e meio de largura. O pescoço, repleto de glândulas encarnadas; a testa, com crinas crespas; as orelhas, escarlates; os olhos, pretos e redondos; as ventas, do tamanho de um punho; a boca rasgada; os beiços grossos; a barba também grossa na queixada; os dentes largos, unidos e cortantes; a língua redonda e as pernas, medindo um metro. Cada dedo media vinte centímetros, e a cauda, um metro. Os pelos eram curtos e castanhos; gritava como lobo e, de suas carnes derretidas, escorreu azeite”.

Para não ferir o padre vigário de Paranaguá, Vieira dos Santos descreve em latim os órgãos genitais do monstro:
“Immodice longum… genitale homini simili”
Consta que uma historiadora, encantada com a descrição do monstro, teria perguntado:
– E a feliz Dona Monstra, por onde andaria?
Ontem e hoje, de monstros o Paraná é farto.
Temos monstros no urbanismo (Jaime Lerner) e, na literatura, um monstro que não é monstro, é um Vampiro chamado Dalton Trevisan.
Monstro na História foi José Francisco da Rocha Pombo, o patrono desta Cadeira número 1.
A cadeira do rio Nhundiaquara.
Rocha Pombo nasceu em Morretes, no dia 4 de dezembro de 1857, filho de Manuel Francisco Pombo e de Angélica Pires da Rocha Pombo.
Teve como irmãos um Lindolpho, um Antônio e sete Marias: Maria do Carmo, Maria das Dores, Maria Rosa, Maria Thereza, Maria América, Maria Júlia e Maria Clara.
De uma família protestante, professores no litoral paranaense, teve o privilégio de muito cedo subir a Serra do Mar, trilhando o caminho das letras. Era o que cabia, e ainda cabe, aos jovens com pouco dinheiro no bolso.

Professor com dezessete anos, jornalista aos dezoito anos, com 22 funda seu próprio jornal, em Morretes. Em 1881, publica o primeiro dos seus tantos livros. Com muitas resmas embaixo do braço, em 1892 o redator do Diário do Comércio e também deputado consegue a doação de um terreno na Praça Ouvidor Pardinho, assenta a pedra fundamental e começa então a sonhar com a Universidade do Paraná. Um sonho interrompido pelas tramas da província, preconceitos que tão bem conhecemos.
De repente, para espanto dos locaes, ele consegue o financiamento para o sonho. E seguem-se então os poréns: Rocha Pombo não tinha curso universitário!
Logo ele! 
Depois de cruzar o rio Nhundiaquara e, nos campos de Castro, atravessar o rio Iapó com a esposa Carmelita no colo, o idealizador da Universidade transpõe seus rios de mágoas para fixar residência no Rio de Janeiro, em 1897, com o apoio de Romário Martins.
No Rio de Janeiro, convertido em historiador, a obra de Rocha Pombo tornou-se extensa. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, o pai da nossa Universidade morreu em 1933, antes de assumir a cadeira 39. Não teve sua obra celebrada pelo sucessor, mas o legado de Rocha Pombo foi justamente reconhecido por Wilson Martins, quando o crítico lamentou que nenhum historiador tenha se debruçado sobre a imensa obra que um dia quase se perdeu nas águas do rio Nhundiaquara.
Quando estudante de Letras, Cassiana Lacerda foi avisada de que uma enchente estava inundando de lama a Casa de Rocha Pombo em Morretes. Não a casa onde o historiador nasceu. Mas uma casa à beira do Nhundiaquara que havia sido restaurado para abrigar a obra do historiador, por iniciativa do governador Paulo Pimentel.
Ao chegar no local, Cassiana encontrou o acervo de Rocha Pombo jogado na calçada. Numa esquina, “El espirutu Municipal em los tiempos de colonia”, obra escrita em espanhol; na outra esquina o “Dicionário de sinônimos da Língua portuguesa”; no outro lado da rua, “A História da América”; adiante a “História do Rio Grande do Norte”; acolá a “História Universal”. Alhures, a “História do Paraná”. E, na barranca do rio, os dez volumes da caudalosa “História do Brasil”.
Quando a estudante de Letras começou a juntar os restos da obra de Rocha Pombo, um senhor a convidou para entrar:
– Moça, voltou a chover! Vem comigo, vamos assistir à minha televisão de passarinho.
Cassiana nunca mais esqueceu a televisão de passarinho. Na janela que se abria para o Nhundiaquara, cheia de bananas penduradas, os passarinhos faziam o espetáculo.
Muito anos depois, professora doutora, Cassiana Lacerda foi recebida pelo presidente da Academia Brasileira de Letras.
Autorizada a acessar o arquivo de Emílio de Menezes (outro paranaense que, eleito, também não chegou a assumir sua cadeira), Cassiana se deparou com o triste espetáculo: em ambos os arquivos, apenas as cartas de Emílio de Menezes e de Rocha Pombo dirigidas ao presidente da ABL, propondo suas candidaturas.
Quanto aos demais acadêmicos, o que ela viu? Em seus arquivos, rico acervo documental e na biblioteca inúmeras edições de seus livros.
Mais uma vez, Cassiana deparou-se com o Nhundiaquara sobre os originais de Rocha Pombo. E de Emílio de Menezes. Descaso, abandono. Enquanto os demais acadêmicos tiveram suas fortunas críticas na ABL enriquecidas por críticos e estudiosos, ou governos de seus estados de origem, ou mesmo familiares (Rocha Pombo teve apenas uma filha e Emílio não teve filhos), os dois paranaenses lá estavam sem haver merecido qualquer iniciativa no sentido de edição e divulgação de suas obras.
Graças a Cassiana Lacerda, com a edição e lançamento solene na Academia Brasileira de Letras da “Obra Reunida” de Emílio de Menezes e o “Paraná no Centenário”, de Rocha Pombo, os paranaenses recuperaram o espaço reservado aos dois acadêmicos. Ainda que, no caso de Rocha Pombo, quase tudo esteja por ser feito.
Novembro de 2010. Cassiana passa os olhos no rio, e conclui:
– Rocha Pombo ainda aguarda que baixem as águas do rio Nhundiaquara.
Passo os olhos na plateia e não vejo o jornalista Aramis Millarch. O crítico e pesquisador musical graças a quem Vinícius de Moraes saiu da Bahia para inaugurar este Paiol.
Marilene Zicarelli Millarch está aqui. Quanta falta nos faz o colunista que deixou quase pronto o perfil da cidade, de A a Z. Entre eles Walfrido Pilotto, o primeiro ocupante desta cadeira que hoje assumo.
A cadeira do Rio Nhundiaquara.
No dia 3 de junho de 1990, Aramis Millarch dedicou sua coluna Tablóide ao seguinte título: “Walfrido, a juventude intelectual de 87 anos”.
Parte do texto é a que segue:
“Se o empresário Jacob Mehl, dono do Hotel-Estância Hidromineral Dorizzon (da cidade de Dorizon – PR), conseguisse convencer uma das mais admiráveis personalidades de nossa vida intelectual e social a fazer um comercial para o seu empreendimento, poderia ganhar até um prêmio.
É que não há melhor demonstração de que Dorizon pode ser identificada com qualidades medicinais do que o fato de ali ter nascido, em 23 de abril de 1903, o escritor, pesquisador, homem público e sobretudo grande memória do Paraná, Walfrido Pilotto. Com uma extraordinária vitalidade, praticamente sem rugas, memória capaz de lembrar os mínimos detalhes e, principalmente, um dinamismo e entusiasmo que o faz transmitir uma verdadeira lição de (bem) viver”.
Depois de revelar que Walfrido foi aluno, amigo e admirador de Dario Vellozo, o fundador do Instituto Neopitagórico e criador do Templo da Musas na Vila Isabel, Aramis conta uma interessante história revelando o lado maçom de Dario Vellozo e Manoel Ribas. O então governador e adepto da Ordem possibilitou, em 1937, que fosse resolvida uma desagradável situação na área de segurança de Estado.
“Delegado de polícia, Walfrido preocupava-se com prisões arbitrárias (inclusive contra judeus e líderes sindicalistas) que vinham ocorrendo, sob a tolerância do então chefe de Polícia José Mehry, mas como este tinha sido seu colega de turma da Faculdade de Direito, e juntos haviam entrado na Polícia, não desejava denunciar o fato diretamente. Walfrido então usou de um truque: pediu ao jornalista Caio Machado, editor de “O Dia”, que o criticasse como responsável pelas arbitrariedades cometidas”.
“Ao mesmo tempo, solicitou ao professor Dario Vellozo que fosse ao Palácio São Francisco e, como maçom, advertisse Manoel Ribas sobre as arbitrariedades cometidas. Poucas horas depois Manoel Ribas, o Maneco Facão, chamava Walfrido e perguntava o que estava acontecendo. Walfrido assumiu uma culpa que não era sua, mas com um objetivo maior: fazer com que o interventor determinasse a libertação dos presos imediatamente. Era o que Pilotto desejava: sem se atritar com Mehry (que afinal havia sido o determinante das prisões) conseguia reparar a injustiça. Mesmo ficando como aparente vilão. Nesse episódio, a intervenção do professor Dario Vellozo foi fundamental”.
“A longa vivência de Walfrido na Polícia (como delegado da Ordem Política e Social, depois diretor da Polícia Civil e do Instituto de Identificação) teve sempre um outro lado que demonstra sua grandeza humana”, atesta Aramis Millarch. “Em abril de 1964, por exemplo, em poucas horas evitou que 56 pessoas do Norte do Estado, presas injustamente, ficassem na Penitenciária do Ahu, já que não tinham qualquer ligação com movimentos subversivos”.
Intelectual que desde a infância se habituou à melhor leitura, conhecendo todos os grandes clássicos, a obra de Walfrido está em mais de 50 livros, grande parte deles edições do próprio autor.
Homem de pouca conversa, por força do cargo de delegado na ditadura de Getúlio Vargas, aos mais próximos Walfrido justificava porque fazia questão de bancar suas próprias edições;
– O que Deus me deu de graça, faço questão de não cobrar.
O jornalista italiano Alfredo Cusano, que aqui passou cinco anos, em 1911 publicou suas impressões sobre o Brasil, começando pelo Rio Nhundiaquara:
“Em Morretes e Porto de Cima, muito prósperas, encontrei por volta de uns quarenta imigrantes italianos que saíram da mediocridade para uma vida melhor. Destes, três usufruíram de uma verdadeira riqueza, porque seu patrimônio oscila entre 200 mil liras e meio milhão. São eles: Salvatori Scucato, a viúva Brambilla e Marcos Malucelli, o mais rico de todos.
Em seguida Alfredo Cusano cita doze imigrantes que possuíam uma fortuna que variava de 80 a 150 mil liras, entre eles Vicente Bettega, Benjamin Zilli e, finalmente, vinte e cinco italianos que possuíam de 50 a 80 mil liras.
E lá estava, ao lado de um De Bona, o oriundo de Vicenza chamado Angelo Pilotto.
De família longeva, Walfrido Pilotto faleceu em 2006, aos 103 anos. Filho de dona Luiza Scheler e Egydio Pilotto, tesoureiro da estrada de ferro, seu pai morreu cedo.
Egydio foi assassinado por assaltantes na Rua Barão do Rio Branco. Em 1930, o crime abalou Curitiba.
Luiza e Egydio deixaram sete filhos: Oswaldo, Walfrido, Olívia, Alice, Raul, Mario e Luiz, que ainda mantém lúcidos 89 anos.
Caso o jornalista italiano retornasse ao Brasil para rever aqueles que saíram da mediocridade para uma vida melhor, ficaria impressionado com a fortuna deixada por Egydio Pilotto.
Não a fortuna em liras, a fortuna da inteligência.
Entre os ilustres confrades, falta nos faz o engenheiro José Carlos Veiga Lopes, nosso falecido presidente. A ele, e a todos os membros desta Academia, agradeço o reconhecimento a este cartunista que escreve de ouvido.
Como o único diploma que ganhei na vida não vale muita coisa (o de mestre agrícola do Colégio Agrícola de Camboriú), com este diploma da Academia Paranaense de Letras já posso me dizer escritor.
E sem ficar vermelho.
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Não vejo na plateia Manoel Carlos Karam. Mas eu o revejo na memória, ao lembrar de sua peça “O avião parte às cinco”. No título, só os censores não enxergavam a referência ao AI-5, o Ato Institucional número 5 da ditadura militar. 
Peça que tive o privilégio de dirigir neste Teatro do Paiol, no final dizia em lágrimas o ator Sansores França :
Não tenho saudade do passado.
Tenho, isto sim, saudade do futuro.

Muito obrigado

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2 ideias sobre “Oração do chargista que é cronista

  1. FERNANDO RODRIGUES

    parabéns, Dante. Com generosidade e talento, mantendo intacta a bela história catarinense nessas terras paranaenses. Fico feliz de ver, mais uma vez, que na sua geografia de sentimentos, rio do sul segue banhando nova trento.

    fernandinho

  2. Jair Elias dos Santos Júnior

    Parabéns Dante, memorável discurso.
    O Paraná necessita conhecer seus filhos, o que eles fizeram e representaram no cenário nacional e internacional.
    Suas palavras é o primeiro passo desta conquista.

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