8:45Diário de Viagem de Franz Hertel

Franz Hertel é o personagem do livro “Meu Bimbim”, de Nelson Padrella, publicado há alguns anos. Este “Diário” está pronto e continua inédito. Padrella, que pinta o sete e borda as letrinhas com a competência dos grandes artistas, nos presenteou com estga “partícula”, como ele chama, da viagem, referente a Lisboa.

de Nelson Padrella

A mirar este mar tanto se me dá! Ai que saudade há. Daqui saíram as naus do Descobrimento, ai que saudade há. Hoje, Portugal já não descobre nada. Tudo ficou roído pelas traças do tempo, deslembrado pelas novas gerações que não entendem esta dor que embalamos com carinho, esta saudade atravancando a estrada. Ir pra onde, meu Portugal? Todos já chegaram lá, ocuparam os espaços. Da caixa de Pandora, aberta, restou para Portugal a saudade. Até a esperança naufragou nas lágrimas choradas. Ai, que carpir me consola. 

Nas pernas brancas de Teresa nua eu escrevia poemas de paixão. Eu quando ria ela chorava um tanto que tanto lhe fazia rir ou não. Nas pernas brancas de Teresa nua eu só rimei uma vez: quando urinei. Estava mole o triste após a guerra batalhada nas pernas de Teresa, e querente que estava de mijar-me, aproveitei a maciez da pele e ali despejei os meus resíduos. Ela pulou da cama qual uma cabra vivente nas montanhas. E me chamou de porco e mais sei lá o quê que aquela boca ainda me xingou. Mas, Teresa, eu disse, poesia, porra! Poesia, Teresa, são teus lábios, são tuas coxas e este corte rubro e quente que ostentas entre as pernas, este declive molhado onde mistérios brincam com centauros. E precisavas mijar-me ô pá? – me disse ela. Não sei, Teresa, perdoa, não sei onde eu estava com a cabeça. 

Ah! Pequeno retrós, com tua linha cirzo as meias furadas que restaram de tanto caminhar por Lisboa. Não é tristeza o que cá vejo, tampouco se pode de alegria chamar o Tejo. Tristeza não, é mais melancolia. Que paira no ar, nos atravessa quando atravessamos de um lado a outro, mirando este rio que nos mira. O pó do passado era de ouro e todo esse ouro nos sufoca. Respiramos com pena o pó do tempo, que o que era de ouro se acabou.

Teresa vem e como que lendo o que tramo, se desnuda. 

Mas não é dor esta saudade. É mais um exercício de solidão. Portugal é um ser que respira. É o herói que lutou em tantas guerras, dilapidou povos e nações, conquistou o mundo e o fundo. Agora, coberto de medalhas, suspira pela amada que se afogou na glória vã de tantas investidas. E sofre por isso de saudade. Saudade é uma coisa portuguesa como azulejos. Como o manso deslizar do Tejo. Portuguesa como a paisagem vista do Castelo. Não, isso não é triste. É com alegria que Portugal cultiva a melancolia de não ser mais o que fora. Mas é uma alegria toda portuguesa, séria como o fado que não se pode dançar.

Foi com alegria que encontrei Teresa. Foi com melancolia que ela se ofertou a mim, no cais do Tejo, pegando aquele trenzinho que vai para destinos algarvios. Seus olhos doces como a algarroba eram tristes e eu pensei que eram tristes de tristeza. Não. Não estavam tristes e nem era de tristeza aquela nuvem pesada que pairou no olhar. Era a fatalidade portuguesa. Ela aceitava o destino de ser minha. Ah! Teresa, pra entender Portugal não basta comer uma mão com grãos numa tasca do Alfama. 

Não basta fazer a pé de Estefania a Santo Amaro. É preciso saber dos mouros, e que a glória de Lisboa se deve a eles. É preciso vivenciar o passado, conhecer como as coisas se passaram. A beleza moura na arquitetura que hoje Lisboa admira. Todo o conhecimento árabe concentrado na Península. Todos aqueles valores, insubstituíveis, que os cristãos roubaram. E se hoje Portugal é cristão, não pode esconder a vergonha pelo mau ofício. E vive de remoer a saudade do tempo que era mouro e cristão e judeu e tudo misturado, cadinho de idéias fervilhando como num caldeirão de bruxas. Bruxas que foram queimadas pelo fogo inquisitório, naquele momento amargo de Portugal medieval. Ah! Mas vieram os descobrimentos, a sorte de toda a glória lhe ser restituída, o olho lançado ao horizonte, ao futuro. Como uma pedra pousada sobre os escombros da crueldade da Santa Madre.

Não basta cantar um fado numa entardecente noite na Albufeira. É preciso saber cultivar a melancolia como se cultiva um cacto. Saber juntar, caco a caco, a porcelana do passado. Tudo cobrir com a cor negra do luto e o roxo mortuário do vinho. Tanta paixão, Portugal, tanta paixão. Quero sentir, que sentir é preciso, o paladar da paixão portuguesa. Quero me embriagar de Teresa. 

Peguei o trem na Santa Apolônia. Abandonei a saudade porque não roubaria o maior tesouro dos portugueses. No dia seguinte estaria na Espanha, olé. 

Talvez fosse remorso. Esse meu deixa-pra-lá. Uma tristeza me roia, uma culpa me mordia. Eu abandonava Portugal à própria sina. Não movi uma pedra para modificar nada. Mas são tão pesadas as pedras portuguesas! Não sei se era remorso aquilo que me acompanhava dentro do trem para a Espanha. Dormi pensando estar ouvindo um fado que falava de adeus, como todos os fados falam de adeus. E eu inventava a letra, dizendo que havia mijado em Teresa. Só a maldade me conforta.

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