7:19O homem noturno

por José Maria Correia
 
Quando passa das sete da noite aproveito que sou invisível (se ganha essa condição aos sessenta anos somente) e parto para as ruas. Ando sem ser notado, mas noto tudo por onde ando. Gosto da rua Comendador Araújo. Não sei por quê, mas gosto. Já andava por ali quando havia o armazém São Carlos, do seu Ary Sperandio e foi o empregado, o Gordo, quem me levou a primeira vez ao Gogó da Ema, um nome de boate mais que esquisito, mas para um piá de 15 anos, qualquer nome servia, como servia qualquer boate e qualquer mulher também. Eu só podia espiar da cozinha, era “de menor” – e ainda não era invisível.

Achava estranho as moças sentadas de pernas cruzadas nos sofás vermelhos, muito bem comportadas, ao lado dos homens mais velhos, todos de terno e gravata como se estivessem na ante-sala de um consultório ou até num velório.
Mas era assim que funcionava: rodadas fartas de uísque para os homens, e um aperitivo fajuto e sem álcool para as moças (o clerico, ou claricol), que garantia a renda da casa. Para sair para um programa era condição consumir pelo menos quatro doses – e nunca antes da uma hora para não desanimar e não esvaziar o ambiente. O Gogó da Ema era um entreposto para o sexo, não muito mais que isso.

Descendo mais a Comendador e chegando à Praça Osório, se ingressava no território dos viados velhos, esses opostos dos vampiros só apareciam durante o dia. Cada banco de praça tinha seu dono. À direita, em frente ao Cine Plaza, reinava absoluto o Osvaldinho, já que era mordomo na mansão dos Camargo logo ao lado. À esquerda, em frente à Stardust, sentava o Baronesa. E circulando, sem direito a banco, mas sempre sorrindo com seus dentes de ouro, o Boca Rica.

O Boca não tinha direito a banco porque era da turma do Passeio Público, onde também o Osvaldinho e o Baronesa não podiam sentar. Havia uma ética na viadagem. Sempre houve, é o que ouvi dizer. Ali, cada um, com o recato e a dignidade possível, e sempre com muita educação, buscava entre os soldados recém alistados e vindos do interior, precisados de um troco, seus clientes. Aliás, clientes não podiam ser, pois se as moças recebiam, os viados pagavam, era assim que funcionava, até hoje creio , porém com outros personagens.

O Stardust, a grande boate, esta sim me encantava, com suas luzes de néon  azul, verde e vermelha a pairar sobre as noites de névoa gelada; e o som de metais e cordas, sax, piston e piano atraindo quem passava e sempre subia para quebrar a solidão.

Lembro quando subi a primeira vez aquela escadaria. Contei trinta degraus, atravessei vacilante uma cortina de lantejoulas e aí dei de cara com o paraíso. Num palco enorme dançavam apenas de calcinha e soutien as coristas mais lindas que eu já  havia visto. Cabelos longos, corpos esguios e perfeitos, bailavam em perfeita harmonia com a orquestra, pernas compridas como de manequins da vitrines e dentes perfeitos que brilhavam como pérolas na luz negra e estroboscópica. Tímido, eu ia direto para a Sibéria, setor onde ficavam os iniciantes, as mesas mais remotas perto das janelas. Ali, ohumilde espectador pedia apenas um Cuba-Libre, coca com rum montilla branco e limão, e observava, só observava.

Via aquelas deusas descerem do palco para sentarem-se à mesa dos fazendeiros de café, coronéis, empresários e políticos corruptos, ou apenas boêmios, homens na faixa dos quarenta aos setenta anos. Para mim, de dezoito, eram uns macróbios pervertidos. Indignava-me sempre. Como pode aquela menina linda sair com o velhote de cinqüenta?
Mesmo sabendo que era por dinheiro, me indignava. Isto muito antes de ficar invisível.

O dono, da família Wendt, detrás do caixa no balcão, ditava as mesmas regras da Gogó. Para sair, cinco drinques, nunca antes da uma hora , a casa não podia desanimar.

Mas o Stardust era também uma grande casa de espetáculos, com orquestras, mágicos, humoristas. Uma casa de arte e de artistas, como dizia o apresentador portenho. “Senhores! La Grand Stardust tien El honor de presentar sensacional Streap Tease , El número ganador Del troféu Roquete Pinto de la noche paulistana. Para sus aplausos, La gitana Esmeralda e El Corcunda de Notre Dam!”

Esse nunca vou esquecer! Como no romance de Victor Hugo, a cigana dança na praça tocando um pandeiro. Na versão da noite o corcunda Quasimodo a assedia, sofre por ela  manca disforme ao redor desta, implora pelo amor não correspondido. A versão do cabaré é melhor que a do romance original. Esmeralda, estimulada pelo desespero do monstro, o provoca. E com a música em crescendo, vai retirando as vestes. A cada peça jogada ao chão, o corcunda geme, chora, leva as peças ao rosto, aspira o perfume, entra em estado orgástico, implora mas nada recebe.
A platéia silencia. A emoção aflora – e aí ocorre uma simbiose entre a nudez completa da striper e o choro convulsivo do coadjuvante, o corcunda. O número era fenomenal e levava quem ao delírio quem assistia. De repente, como que por encantamento, os pecados da casa eram redimidos pela voz solene do apresentador portenho que, solene, de fraque asa de barata, pedia : “Aplausos caballeros! Esta é una casa de arte! De arte e de respeto”.

Como não voltar e como não entrar ao ver na porta estampadas as fotos das moças e o nome dos espetáculos “ A Bela e a Fera, “ Branca de Neve e os Sete Anões”, “O Império das Amazonas”, “Trapézio” e o sensacional “Fantasma da Ópera”, talvez o melhor tema pela dramaticidade e tantos e tantos outros?

No Stardust não havia apenas o mercado da carne. Havia os que iam apenas para ouvir música e para dançar bolero, rumba, tango e samba. Era também uma escola de dança. Uma vez assisti de meu canto um desafio entre dois Delegados de Polícia desafetos. Cardeais, não se suportavam, não se falavam, disputavam as mesmas mulheres e as regalias da casa, reservada apenas para as autoridades: uísque pouco falsificado e mesa de pista.

Paulo Wendt,  o rei da noite, foi o padrinho da dupla. Armas escolhidas, nada de pistolas calibre 45 ou 38 – somente um tango argentino, muito mais passional, muito mais mortífero. A música  selecionada: “Por uma Cabeza” do brasileiro Alfredo Le Pêra, parceiro de  Carlos Gardel.

A notícia correu a cidade. Os habitués da noite se alvoroçaram. Os desafiantes treinavam às escondidas. Um deles importou uma professora do Teatro Colón de Buenos Aires. Apostas foram feitas e o júri imparcial escolhido: o pianista Lázaro, Getúlio gigolô , um maestro que para não ser identificado compareceu com uma elegante máscara negra, e uma veterana  professora de balé do teatro Guaíra.

Reservas de mesas esgotaram-se rapidamente e, finalmente, com casa cheia, abriram-se as cortinas do espetáculo.
O maitre segurou a platéia até a meia noite e, aí, retirado o palco, formou-se uma pista especialmente preparada e encerada. Sob as luzes dos holofotes, os Delegados encararam-se. Pareciam dois lutadores de boxe. Não olhavam nos olhos, para não serem atemorizados pelo adversário.

O maitre anunciou solene: “Caballeros e Damas La Grand Stradust esta noche les presenta um sensacional concurso de tango”. Citou os nomes dos Delegados, que agradeceram os aplausos com um discreto aceno de cabeça. Cada um foi para um lado do salão. Então, anunciadas com pompa e circunstância, entraram em cena as damas e partners.

As meninas estavam lindas, duas morenas espetaculares. Uma vestida de vermelho , outra de azul. Os vestidos eram iguais, com cortes longos nas coxas, apropriados para os passos mais longos. O maestro ergueu os braços e os violinos atacaram, acomanhados do bandeoneón trazido da orquestra de Astor Piazolla de Buenos Aires e executado pelo famoso Menendez,  emprestado do boate Cádiz. Os aplausos foram fartos aos primeiros acordes : “Por uma cabeza de um nobre potillho …”

Os Delegados estavam afiados. Deslizavam, rodopiavam, seguiam uma marcação profissional de ponta a ponta no salão. Já no meio da música, uma parada clássica ‘QUE IMPORTA PERDER-,ME MIL VECES LA VIDA , PARA QUE VIVIR … ? Compassos fortes, passos ensaiados, rodopios… Era difícil dizer quem dançava melhor. Cruzaram no meio do salão. Um deles, de propósito, afastou o colete e deixou ser vista uma pistola Dillinger, cabo de madre pérola. temida e famosa entre e a malandragem. Terminaram a dança em sincronia perfeita com as damas: braços e pernas estendidos e cabeças para trás.

A casa nunca ouviu aplausos como naquela noite. As meninas receberam buquês de flores. Os Delegados, já veteranos, dirigiram-se cada qual para a sua mesa. Um deles trouxera a esposa e as amigas desta na torcida.
O júri demorou um pouco, mas chegou a um veredicto. Houve quem propusesse empate , mas o voto de Minerva foi de Getúlio Gigolô, ele mesmo um dos maiores dançarinos da noite curitibana. Sentenciou: “Ambos dançaram muito bem, mas no tango é preciso teatralidade, expressão facial, olhar apaixonado. Ganhou por uma cabeça , diferença mínima, o delegado Miguel Zacharias. Naquela noite, o poderoso Dr. Miguel, que jamais bebia, abriu uma exceção e brindou a sua a sua partner Stela com uma taça de champagne . 

Hipnotizado e encantado, a tudo assisti. Lá pelas duas da manhã, acabada a grana, subi a Comendador Araújo  cantando “todas las locuras, su boca que beza borra La tristeza  para que vivir ?”… Dormi sonhando que dançava com a Stela, sob a poeira das estrelas. E depois também virei Delegado.

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