17:20Luzes

luzesorlandokissner-a

luzespolaco3a

luzespolaco2a

Fotos de Orlando Kissner

Bebeu as luzes e aquilo foi como uma revelação que não sabia de onde vinha. Lembrou vagamente que o pai e a mãe tinham prometido o passeio pela noite iluminada. Sabia dos presentes. Sabia das propagandas da tela da televisão. Via gente feliz ali. Não via gente feliz na vizinhança. Achava que a rua de terra, as construções de madeira velha, o cheiro forte e ruim do esgoto, a escola pichada, as notícias de mortes violentas de crianças um pouco mais velhas, isso e mais tudo eram motivo. Mas ele tinha algo que guardava ali no fundo do coração de pouca idade. Ele acordava e achava que o sonho da noite continuava, porque sentia a vida pulsando. Por isso que ao descer do ônibus com a roupa nova, o cabelo penteado com carinho pela mãe, a segurança sentida na mão calejada do pai, se encantou com aquelas luzes todas mostradas, adornando algumas casas. Havia a figura do tal de Papai Noel que ele não entendia direito. Em alguns lugares viu o tal de presépio – e esse ele entendia. Porque aquele menino ali era o mesmo que via pregado em todos as cruzes. E ele sempre achou, mesmo sem saber porquê, que no meio daquela história tinha alguma coisa combinava com aquilo que sentia ao acordar. Por isso ele começou a beber as luzes e as revelações vieram como acontecia às vezes quando estava deitado e olhando o feixe de luz do sol atravessando o ar do barraco desde o buraco numa das tábuas até o chão de terra batida. Pensava tanta coisa, de forma tão variada, que certa vez até se viu nascendo para logo depois entrar em campo, dar um chute numa bola e sair com um diploma de doutor festa de um teatro grande. Pois agora tudo vinha num turbilhão que lhe mostrava coisas ruins dos seres humanos, coisas que via nos telejornais, que ouvia gente contar na sua rua, mas também algo como um recado de esperança. E isso era exatamente aquilo que via, não importando se na casa bonita dos que tiveram mais sorte na vida, não importanto se no castelo que abrigou ricos – ou até por isso. É que aquelas luzes, as luzes agrupadas e espalhadas no mundo, ao mesmo tempo, para a comemoração daquela data, eram um sinal de que o mundo não é feito só de angústia, terror, depredação, tristeza. O menino bebia as luzes porque elas foram colocadas por mãos guiadas por aquela parte da alma que acredita, mesmo sem saber, no lado bom, acredita no amor. E ele ficou feliz por isso. Uma felicidade difícil de traduzir ou decifrar. Então olhou para os pais e a família que o acompanhava e sorriu. E todos sorriram de volta. E alguém pensou: isso é Deus.

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.