8:56Deficiente visual vai tomar posse como desembargador do TRT do Paraná com a presença do presidente Lula

O presidente Luis Inácio da Silva vem a Curitiba na próxima quinta-feira para uma solenidade muito especial: a posse do procurador Ricardo Tadeus Marques da Fonseca como desembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, o primeiro deficiente visual a ocupar tal cargo na história. Fonseca foi escolhido na lista tríplice enviada a Lula. Sua história de vida é brilhante (leia texto abaixo). Ele é formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde perdeu a visão completamente. Foi discriminado ao ser aprovado para o concurso de juiz do Tribunal Trabalho de São Paulo. E quem o impediu de assumir a vaga? Nicolau dos Santos Neto, então presidente do TRT, o Lalau do roubo dos milhões para a construção da sede de São Paulo. O futuro desembargador do TRT do Paraná prestou concurso aqui, onde exerce o cargo de procurador há 17 anos. Neste tempo fez mestrado e doutorado na sua especialidade e escreveu o livro “O Trabalho da Pessoa com Deficiência e a Lapidação dos Direitos Humanos.”

Publicado na “Revista Sentidos” em fevereiro de 2007

O procurador do Trabalho Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, 47 anos, nunca se intimidou diante de obstáculos. Nasceu prematuro, sofreu paralisia cerebral em decorrência disso e ficou com deficiência visual. A mãe, Genny, exigiu que o filho tivesse oportunidades iguais às de outras crianças, na escola, quando poucos falavam em inclusão educacional. Anos mais tarde, Ricardo formou-se em direito pela Universidade de São Paulo (USP)- meses depois de perder a visão completamente. E não parou por aí. Fez mestrado e doutorado.

Conheceu a discriminação ao ser impedido de prestar concurso para juiz do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo. Quem o impediu? Nicolau dos Santos Neto, então presidente do TRT- o mesmo Lalau condenado por desvio de milhões em recursos públicos durante a construção do edifício sede do tribunal. Ricardo Tadeu não desistiu. Prestou concurso em outro estado.

Há quinze anos, atua no Ministério Público do Paraná. Fez mais: publicou o livro “O Trabalho da Pessoa com Deficiência e a Lapidação dos Direitos Humanos.” Mas sua vida não foi dedicada apenas ao trabalho. Ele encontrou força para enfrentar as batalhas do caminho no apoio recebido da mulher, a artista plástica Suzana, e das filhas Maíra, de 20 anos, e Iara, de 15. “O trabalho leva o homem a ser sujeito do próprio destino e não mero beneficiário do assistencialismo caridosamente excludente.”

 
O que significou ficar cego meses antes de se formar advogado?
Eu tinha 23 anos. Estava no terceiro ano da faculdade de direito da USP. Achei que não conseguiria terminar o curso. Meus amigos não me deixaram desistir. Cada um escolheu uma disciplina e gravou o conteúdo de livros e aulas para eu estudar. Isso marcou minha vida definitivamente. A turma fez questão que eu me formasse junto com ela. Descobri que poderia fazer o que quisesse.

 
Enfrentou dificuldade nos estudos?
No começo, precisei de métodos especiais por ter baixa visão. Fui alfabetizado em casa, por minha mãe. Nunca estudei muito braile. Ainda criança, mudamos para Porto Alegre, onde tive o privilégio de estudar em uma escola que já era construtivista nos anos 60. Foi difícil voltar a São Paulo (no meio da 7ª série). A escola não assumiu minha condição. Já que os professores não me ensinavam, pensei, resolvi bagunçar. Recomendaram, então, que eu fosse para a escola Padre Chico- especial para cegos. Minha mãe discordou e matriculou-me em uma escola regular. Mas acabei entrando na USP.

 
O vestibular foi acessível?
As provas foram gravadas em fita. Eu respondia colando o rosto na folha de questões. Já na faculdade, senti dificuldades concretas porque precisava ler mais. Tive de contratar ledores a fim de estudar para concursos – e fazer mestrado e doutorado. Opto por ter a ajuda de pessoas que lêem pra mim, porque apesar de hoje haver programas de acessibilidade para computador, falta tempo para digitalizar tudo. Sempre tive de investir recursos para estudar.

 
No trabalho acontece o mesmo?
Também preciso de alguém para ler. Uma pessoa em quem confio, que lê e escreve o que eu dito. Trabalho com um analista processual designado pelo Ministério Público. Lido com documentos (em papel) de 200 inquéritos e processos civis e, no momento, conduzo 50 ações sobre questões de interesse público. Combatemos a discriminação profissional: questões como assédio moral, racial, sexual, e em critérios de promoção. E fiscalizamos o cumprimento da Lei de Cotas.

 
O que é preciso fazer para garantir o cumprimento das cotas?
Optamos, primeiro, por audiências públicas para estabelecer um procedimento administrativo de acompanhamento de cada empresa. Cerca de 90% dos casos resolvemos assim. Para os outros 10%, é preciso entrar com ações. A Justiça tem acolhido as solicitações e estabelecido multas pesadas.

 
É uma ótima porcentagem.
Sim. Estou terminando um procedimento com o HSBC- que tem sede em Curitiba. Por ele, vamos empregar 1.400 deficientes em todo o Brasil. O banco formará as pessoas em parceria com uma ONG, em contratos de aprendizagem. Depois de 8 meses, elas serão contratadas. A alternativa surgiu graças à Lei do Aprendiz. Trabalhei para que o limite de idade para pessoas com deficiência fosse quebrado. Já é possível contratar deficientes acima de 18 anos na condição de aprendizes.

 
Qual é a importância disso?
Reconhecer que a maioria das pessoas com deficiência tem escolaridade baixa e, portanto, formação inadequada para o mercado. Revertemos o argumento de empresas que não contratam com a justificativa de falta de capacitação dos candidatos com a viabilização de contratos de aprendizagem com ONGs, o Senai e o Senac. Acredito que isso vá tomar corpo e será uma alternativa interessante de emprego em todo o país.

 
Alguma vez foi beneficiado pessoalmente pela Lei de Cotas?
A lei não existia quando me formei (1984) nem quando prestei concurso (1991). Mas nem precisaria. Fui aprovado em quinto lugar, e fiquei em terceiro por titulação, entre 5 mil candidatos no concurso do Ministério Público. Era comum eu não ser contratado. Me chamavam por causa do currículo, mas o pessoal do RH ficava atônito ao me ver chegar. Em 1987, fui contratado por um juiz do Tribunal do Trabalho de Campinas, Osvaldo Freeus, como assessor para a elaboração de acórdãos (decisões de segundo grau na Justiça). Em 1990, estimulado por ele, decidi prestar concurso para juiz no Tribunal do Trabalho de São Paulo, mas fui impedido.

 
Como isso aconteceu?
Minha inscrição como cego foi aprovada. Passei nas duas primeiras provas, a de múltipla escolha e a dissertativa. Antes da última prova, que previa elaborar uma sentença- coisa que eu fazia havia três anos – o tribunal decidiu antecipar meu exame médico. Só o meu. Com base em um laudo médico que atestava minha cegueira, me impediram de realizar a prova.

 
O que alegaram?
Que eu não poderia ver documentos nem tampouco a expressão de réus e testemunhas. Mas posso avaliar a oscilação vocal melhor que um vidente. Juízes, quando recebem documentos em língua estrangeira, precisam de um tradutor juramentado que o leia em seu lugar. O ledor, acredito, cumpre a mesma atuação. A postura do tribunal foi violenta. Decidida pela comissão de concursos e confirmada pelo presidente do TRT, o juiz Lalau.
Lalau, que depois foi preso…

Foi uma decisão preconceituosa. Na época fiquei abalado. Mas não guardo mágoa. Hoje sou convidado a entrar na magistratura pelo quinto constitucional (referente a 1/5 das vagas dos tribunais de segunda e terceira instância), que permite a advogados e procuradores ocupar cadeiras de desembargadores – o que muito me honra.

 
Pretende aceitar o convite?
Estou feliz como procurador de Justiça e ainda não tenho essa intenção. O que aceitei foi compor a banca de exame oral para concurso de juízes em Curitiba. É a última prova, a mesma que fui impedido de fazer! Agora há leis que impedem as comissões de dizer de antemão se um candidato pode ou não prestar esse concurso.

 
Existe punição para quem discrimina deficientes?
A lei 7.853/89 prevê, em seu artigo 8º, pena contra quem impedir o acesso à escola e ao trabalho, sem justa causa, reclusão de 1 a 4 anos e multa. Mas a expressão sem justa causa abre espaço para muitas manobras. Escolas alegam não possuir professor capacitado ou estrutura arquitetônica adequada. A tendência do juiz é crer que não há condições de fato. A recusa justa é considerada e ninguém pode ser preso. Enquadrar como discriminação é muito difícil.

 
Como avalia o valor do trabalho?
Vivemos na sociedade do trabalho. O que você realiza passa ser a sua identidade. Mas o direito ao trabalho está em crise. Muitos defendem a redução dos direitos laborais. Discordo. O trabalho não é mercadoria, algo que se compra e vende. Tanto o direito ao trabalho e os direitos do trabalho dizem respeito à dignidade, que luto para preservar contra a ganância do mercado. Não quero combater o lucro e a livre iniciativa, longe disso. Defendo o trabalho como empregado, autônomo, empreendedor. Ele é inerente à dignidade humana e proporciona independência, autonomia, capacidade de realização. Quando luto para cumprir a Lei de Cotas, quero reconhecer o direito de todo cidadão à dignidade.

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