16:05Trilhando a América nos vagões da miséria

Enviado por Geraldo Serathiuk:

Jack London, vagabundo errante da crise de 1893, continua a ganhar discípulos

Sérgio Augusto – O Estado de São Paulo

Daquela vez, a crise veio de trem. Precedida por um surto de pânico em 1873, a grande crise financeira de 1893 foi a maior que a América até então enfrentara. Culpa da bolha ferroviária e, a exemplo das seguintes, do estrangulamento do crédito. As ferrovias haviam se expandido de forma desordenada (11 bitolas diferentes, excesso de companhias operando nos mesmos trechos) e, antes do fim da linha, 15 mil empresas e 500 bancos descarrilaram, deixando na mão 18% da força de trabalho.

Seus efeitos ainda eram sentidos por todo o país quando, em 1895, estreou na Broadway a peça The War of Wealth (A guerra da riqueza). Tema: a desesperada corrida aos bancos de dois anos antes. O público fez sua catarse e o autor do espetáculo, C.T. Dazey, engordou sua poupança.

Jack London não teve a mesma sorte. Também inspirado pela crise econômica, escreveu um livro, The Road, de imperceptível repercussão popular e tépida recepção crítica. Mas, seis ou sete décadas atrás, a peça de Dazey já caíra no esquecimento enquanto o livro de London ia acumulando admiradores, sobretudo entre os ficcionistas que se confessavam discípulos do andarilho número 1 da literatura americana e sua viagem pela deprimida América de 1894. The Road foi para a crise de 1893 o que As Vinhas da Ira seria, mutatis mutandis, para a Depressão de 1929.

London tinha apenas 18 anos. Intensamente bem vividos, na Califórnia. Impedido pela pobreza de estudar de forma adequada, caiu cedo no mercado de trabalho. Foi entregador de jornais, faxineiro, arrumador de pinos de boliche, operário de uma fábrica de enlatados. Meteu-se com foras-da-lei (os piratas de ostras da Costa Oeste), que a seguir ajudou a combater, e, aos 17, alistou-se como aprendiz de marinheiro numa escuna rumo ao Japão e à Rússia. Queria fugir do inferno em que a quebradeira de ferrovias e bancos mergulhara a América. Quando voltou, a crise, como o célebre dinossauro de Antonio Monterosso, ainda estava lá.

Leitor compulsivo (adorava os contos de Washington Irving, os relatos de aventuras marítimas, o Herman Melville de Typee, Joseph Conrad), na certa devorou, como todo americano, Walden ou A Vida nos Bosques, de Henry David Thoreau, mas desconheço se a pinimba do filósofo naturalista com o símbolo máximo do progresso e da integração territorial da América o deixara de rabo em pé.

“Não andamos sobre a estrada de ferro, ela é que anda sob nós”, objetara Thoreau, em 1854, 24 anos depois da inauguração da primeira linha de passageiros do país, ligando Baltimore a Ohio. Receava que o transporte ferroviário viesse a exercer daninha influência sobre seus usuários, demarcando com suas chegadas e partidas o dia das pequenas cidades, cujos relógios passaram a ser acertados pelos apitos dos trens. Se bem administradas, as ferrovias podem regular o país inteiro, profetizou Thoreau. Como foram mal administradas, apenas desregularam a economia do país inteiro às vésperas do século 20.

Ao tomar conhecimento de que um jovem gráfico e sindicalista chamado Charles Kelly organizara, nos arredores de São Francisco, um “exército” de desempregados para marchar até Washington e exigir do governo medidas efetivas para debelar a crise, London arrumou a trouxa, e, de carona em carona de trem, incorporou-se ao grupo no meio do caminho. Mas afinal o abandonou no Missouri, convicto de que protestar contra as injustiças econômicas o interessava muito menos do que experimentar, livremente, como era ser pobre na América.

Teso, passou a viver, como Blanche Dubois, da caridade de estranhos. Mendigou esmolas e comida, testemunhou a violenta repressão do governo Cleveland aos milhares de esfomeados que tentaram bater à porta da Casa Branca, deslocou-se de trem, barco e a pé, calçado e descalço, e acabou preso por vadiagem durante 30 dias, já na Costa Leste.

Tudo o que viu e vivenciou no interior da América, em parte do Canadá, e no cárcere de Nova York, anotou a lápis num diário de 83 páginas. Pretendia configurá-lo como um ensaio a quatro mãos sobre, entre outras coisas, a generosidade e hospitalidade dos americanos mais pobres e a mesquinhez dos mais ricos. Mas o projeto gorou, e London foi destilar sua indignação contra “as iniqüidades do sistema” nas páginas do diário San Francisco Chronicle, da cadeia Hearst. Publicadas em capítulos na revista Cosmopolitan, suas memórias estradeiras só ganhariam lombada na primavera de 1907, acrescidas de fotos posadas, feitas pelo autor.

Àquela altura, London já lançara meia dúzia de livros, três dos quais perenes best sellers: Call of the Wild (que Monteiro Lobato traduziu como O Grito da Selva, mas também é conhecido aqui como O Chamado da Floresta e O Chamado Selvagem), O Lobo do Mar e Caninos Brancos. Mal The Road chegou às livrarias, London largou o Partido Socialista, ao qual se filiara ao voltar à Califórnia, e, desiludido com “o estado geral do país”, embarcou em seu iate, o Snark, e zarpou para os Mares do Sul, onde pretendia navegar durante sete anos. Foi em suas águas que escreveu Martin Eden, romance algo autobiográfico sobre um escritor que, desavindo com a fama e “a fatuidade burguesa”, suicida-se no Pacífico.

O relativo fracasso comercial de The Road, que alguns anos atrás a L&PM traduziu como De Vagões e Vagabundos e a Boitempo acaba de editar, com um enriquecedor prefácio de Luiz Bernardo Pericás e um título fiel ao original, A Estrada, foi uma anomalia no venturoso currículo de London, o primeiro americano a ganhar US$ 1 milhão com o ofício de escrever livros. Seu público, imenso e internacional, sempre preferiu suas ficções globe-trotters, cheias de coragem, compaixão e romantismo, todas vazadas num certo tipo de realismo cujo domínio dizia ter adquirido durante seu “aprendizado na indigência”. Para conseguir um prato de comida, viu-se muitas vezes obrigado a contar histórias que soassem verdadeiras. “O realismo é a única coisa que se pode trocar na porta da cozinha por um prato de comida.”

Foi London quem pôs nos trilhos a literatura “on the road” americana e a mística do “hobbo”, o vagabundo errante. De Ernest Hemingway (o jovem Ernest, disfarçado de Nick Adams, atravessando o país nas décadas de 1920 e 1930) a Jack Kerouac (que até cita London nominalmente em seu clássico On the Road, aqui Pé na Estrada, prestes a virar filme, dirigido por Walter Salles), todos comeram na marmita de The Road.

London também influenciou George Orwell. Seu “aprendizado na indigência”, tanto nas estradas americanas e como no East End londrino do início do século passado (pano de fundo de O Povo do Abismo-Fome e Miséria no Coração do Império Britânico, traduzido pela Perseu Abramo em 2004), serviu de inspiração para as experiências relatadas por Orwell em Na Pior em Paris e Londres (Cia. das Letras, 2006).

Não há por que duvidar que a jornalista e ensaísta Barbara Ehrenreich tenha sido influenciada por London ao planejar seu estudo sobre os que viviam à margem da exuberância econômica da Era Clinton. Para descobrir como era ser pobre e desempregado na América de dez anos atrás, Ehrenreich passou meses morando precariamente e ganhando entre dois e sete dólares por hora como garçonete, arrumadeira de hotel, faxineira e ajudante de enfermagem em asilos. Detalhes em Nickel and Dimmed.

No ano seguinte ao lançamento de The Road, London publicou outra obra de notável influência sobre Orwell e quem mais tenha se exercitado na fabulação distópica: O Tacão de Ferro (Boitempo, 2003). Ambientado numa América protofascista, onde o controle dos cidadãos por uma oligarquia não é menor que o imposto pelo Big Brother de 1984, O Tacão de Ferro virou livro de cabeceira de Lenin, Trotski e outros radicais de esquerda. Mas não só nessa seara arrebanhou admiradores. Kurt Vonnegut estreou na literatura com um pesadelo futurista, Piano Player, confessadamente marcado pela leitura de The Iron Heel. E o mesmo se pode dizer de outro precursor de Vonnegut: Sinclair Lewis, o de You Can?t Happen Here

 

 

O Universo político e social de Jack London
em 28/09/2004

Entrevista com Maria Sílvia Betti
O livro “O Povo do Abismo”, de Jack London, é um dos lançamentos mais recentes da Editora Fundação Perseu. Para escrever este livro, Jack London exerce o que hoje chamamos de jornalismo participativo, ou seja, passa a viver com moradores de rua de Londres, isso em 1902, e denuncia toda a injustiça social e a miséria no centro do império mais poderoso da época. O mais impressionante neste trabalho, que teve um grande sucesso de vendas, é como o autor consegue prender a atenção do leitor, seja pela sua capacidade de entretê-los, seja pela riqueza de informações – geográficas, políticas e sociais – que ele consegue transmitir.

Maria Sílvia Betti, professora de literatura norte-americana da USP e estudiosa da obra de Jack London, faz uma apresentação de 40 páginas no início do livro e descreve as principais características do autor, sua trajetória como escritor e jornalista, sua trajetória de vida, seu envolvimento com a política, entre outras questões.

Nesta entrevista exclusiva ao site da Fundação Perseu Abramo, ela comenta algumas dessas questões.

1 – Por que as obras de Jack London fizeram e fazem tanto sucesso, a ponto de torná-lo um dos escritores mais lidos do mundo?

Jack London tem uma característica fundamental que é a de tratar de temas e questões que conheceu na prática, em sua intensa e diversificada experiência de trabalhador, militante, viajante e repórter. As narrativas de viagens e de aventuras sempre foram um campo de enorme interesse dentro da indústria cultural, pelo fato de combinar o prazer literário da ficção ao gosto pela extensão de conhecimentos, ou seja, pela informação sobre outras realidades geográficas, sociais e culturais. Jack London lida de forma extremamente eficaz com esses dois aspectos, o que amplia consideravelmente a faixa de leitores atingida por seus trabalhos. A habilidade na composição dos enredos enriquece-se com o conhecimento direto das regiões, tipos humanos, atividades de subsistência e costumes abordados. Essa combinação lhe dá uma gama extraordinariamente ampla de possibilidades de criação. Tendo vivido numa época de intensas e rápidas transformações no mundo do trabalho e das relações políticas, Jack London acabou constituindo uma obra de caráter singular, uma vez que, a todas essas características, acresce-se o fato de ele escrever e pensar, durante a maior parte de sua trajetória, sob o prisma do socialismo e sob a ótica do trabalhador, do proletário, do miserável, do excluído. Pode-se dizer que, ao longo de seus trabalhos, fazem-se presentes praticamente todas as principais questões sociais e econômicas de sua época: a expansão imperialista nos diferentes continentes, a exploração do trabalho, as desigualdades sociais e econômicas e a concentração da riqueza. Esse conjunto de características dá a suas obras um interesse que se apresenta não apenas no campo do entretenimento e da indústria da cultura (que se encontrava em enorme processo de expansão nos Estados Unidos em sua época), mas também no campo da literatura, e da ciência política, dada a dimensão política de seu trabalho. Esse é um conjunto extremamente significativo de características, que dá ao seu trabalho um interesse especial sob vários ângulos e, portanto, para um público de leitores extraordinariamente amplo.

2 – Na obra do autor, que papel teve “O Povo do Abismo”, e por que esta obra dialoga com os tempos atuais?

“O Povo do Abismo”, escrito e publicado em 1903, é um dos trabalhos mais representativos, precisamente, da expressão política do pensamento de Jack London. Segundo suas próprias palavras, nenhum dos livros, que havia escrito até então, o havia tocado tanto. Desenvolvido sob a forma de reportagem e como resultado da participação direta nas circunstâncias descritas, “O Povo do Abismo” é uma indicação inequívoca do engajamento de Jack London na causa socialista nesse momento e um documento de incrível contundência, registrando in loco o mundo da exclusão e da miséria em plena capital da grande potência imperialista e econômica da época. Exercendo uma intensa atividade de militância partidária, Jack escreveu o livro por sua própria iniciativa: ele havia sido convidado a cobrir, como repórter, a Guerra dos Bôeres, no Sul da África, e ao desembarcar em Londres, onde deveria tomar o navio para a África do Sul, recebeu um telegrama cancelando o compromisso. Ao invés de voltar aos Estados Unidos, ele resolveu aproveitar a oportunidade histórica que se apresentava, com a aproximação das festividades de coroação do rei Eduardo II, para registrá-la sob a ótica das populações miseráveis do East End londrino, fazendo-se passar por um marinheiro americano desempregado e indo temporariamente conviver com a população local. Isso lhe deu a possibilidade de observar e analisar na prática o reverso da opulência e da austera solidez aparente daquela sociedade. A publicação vem aumentar ainda mais o destaque de Jack dentro do movimento socialista norte-americano. Em pouco tempo ele viria a se tornar um verdadeiro símbolo da luta socialista no país, e “O Povo do Abismo” sem dúvida alguma teve um papel importante nesse processo. Além de ter sido publicado pela Macmillan, o livro saiu, também, em forma seriada, o que indicava seu grande apelo para um público leitor que vinha crescendo cada vez mais, naquele momento, com a expansão do socialismo.

3 – Como o marxismo influenciou o autor?

O contato com os escritos de Marx difundiu-se, entre a militância socialista nos Estados Unidos, com a chegada dos imigrantes alemães, entre as décadas de 40 e 50 do século XIX. Marx escreveu, inúmeras vezes, para o jornal New York Tribune, e em 1857 foi fundado em New York o Communist Club. Esses fatos sem dúvida contribuem para a difusão do marxismo nos Estados Unidos. Jack London, no entanto, tornou-se socialista, antes de mais nada, por sua vivência da condição proletária, e teve seus primeiros contatos com o marxismo através de uma cópia do Manifesto Comunista lida aproximadamente aos dezenove anos de idade, num período em que sobrevivia e sustentava a família em meio a grandes instabilidades econômicas e privações de toda ordem. O contato com o marxismo foi decisivo, para ele, no sentido de lhe trazer fundamentos teóricos para lidar com convicções que viriam a ser fundamentais em seu trabalho – e das quais, mesmo intuitivamente, ele sempre havia estado empiricamente próximo – a crença na importância da luta de classes, a idéia de que a propriedade privada dos meios de produção representava uma usurpação dos direitos da maioria, e, a confiança na vitória do socialismo.

4 – De que forma o engajamento político de Jack London norteou e/ou influenciou seus trabalhos e sua vida?

A idéia da luta pelo socialismo sempre esteve presente no trabalho de Jack London, seja pelo exercício propriamente dito da militância, intensamente exercida em escala nacional, seja pelos temas e abordagens encontrados em trabalhos como “Class Stuggle”, “The Iron heel” e “O Povo do Abismo”. Ele atuou, paralelamente, como jornalista e articulista, e produziu um material ensaístico altamente significativo dentro do debate político de seu tempo. Trabalhos como “War of the Classes” e “Revolution” são representativos da natureza combativa, argumentativa e ao mesmo tempo participante que sempre o ligou ao socialismo sob o prisma do envolvimento direto com a militância e o debate de idéias. A denúncia da exploração do trabalho e a desigualdade econômica são assuntos recorrentes em seus escritos, assim como a escolha de ângulos de observação onde a perspectiva dos proletários e desprovidos é a adotada, como acontece em “The Apostate”, onde trata da exploração do trabalho infantil, de “The mexican”, onde expressa sua simpatia pela Revolução mexicana, e em “Something Rotten in Idaho”, onde faz importantes e corajosas denúncias, para citar apenas alguns. No que se refere ao âmbito da vida pessoal de Jack, seu talento literário associou-se à militância através de campanhas nacionais onde atuava como orador e conferencista. Rapidamente alçado à condição de celebridade literária, de fenômeno de vendagens de livros e de símbolo nacional da luta pelo socialismo, Jack tornou-se uma figura pública, e todas as suas ações e posições passaram a suscitar comentários e desdobramentos dentro do partido e do debate político da época. Se por um lado isso representou uma prova incontestável de uma enorme influência e calorosa acolhida junto aos companheiros de partido e ao público em geral, por outro, contribuiu para expô-lo a cobranças, principalmente na medida em que os crescentes compromissos editoriais passaram a ocupá-lo quase que integralmente.

5 – Que outras obras do autor merecem destaque?

Os contos e histórias de aventuras de Jack London são inconfundíveis, como estilo, e apresentam o autor no campo onde ele se movimenta com maior flexibilidade literária e capacidade criativa: “Caninos brancos”, “O chamado selvagem” e “Histórias dos Mares do Sul” são algumas referências imprescindíveis pela representatividade que têm dentro do trabalho literário de Jack. No campo das idéias e da militância socialista, “Tacão de Ferro” e “O povo do Abismo” são os dois trabalhos mais expressivos do pensamento do autor.

 

O povo do abismo (resenha do jornal Rascunho)
em 23/04/2006

Imenso matadouro
-O povo do abismo, reportagem de Jack London, é relato doloroso da exploração humana
O povo do abismo
Jack London
Trad.: Hélio Guimarães e Flávio Moura
Editora Fundação Perseu Abramo
336 págs.
O nome de Jack London evoca, para os leitores brasileiros, romances e contos vigorosos sobre aventuras passadas em lugares selvagens, tais como as famosas incursões do escritor pelas minas de ouro do Klondike, no Alasca. Pouco se conhece, entretanto, de sua faceta de jornalista, sempre referida na biografia do autor, mas cujas obras são pouco divulgadas no Brasil.

A publicação da reportagem O povo do abismo – Fome e miséria no coração do império britânico: uma reportagem do início do século 20 (pela Coleção Clássicos do Pensamento Radical, da Editora Fundação Perseu Abramo) vem, portanto, preencher uma grande lacuna no conhecimento da obra deste autor americano. Mais do que isto: ela nos permite o contato com um dos mais dolorosos relatos sobre a exploração humana, através do mergulho na região mais miserável de Londres, o East End, na qual iam parar todos os homens, mulheres e crianças considerados “ineficientes” pelo sistema industrial – lá “onde mora a destruição na qual definham miseravelmente”.

Para mostrar, por dentro, a realidade dos desgraçados londrinos, que não tinham nem onde encostar a cabeça, “porque havia uma lei que proibia os sem-teto de dormir à noite” em áreas públicas, London escolhe o caminho mais difícil e arriscado, mas o único possível: passando-se por um marinheiro americano desempregado, mergulha ele mesmo na desolada região, vivenciando na própria pele as condições de vida dos seus habitantes.

Não é possível exprimir o horror revelado no livro nas escassas linhas desta resenha. Mas, a leitura da obra, sem dúvida uma das mais contundentes reportagens já realizadas – escrita em 1902 e publicada em 1903 -, permite-nos colocá-la ao lado de outro monumento, do mesmo período: Os sertões. O clássico de Euclides da Cunha (também de 1902) é outra das primeiras obras de jornalismo literário (precursoras do new journalism americano, dos anos 50 e 60) que lançam um olhar agudo sobre segmentos desamparados da sociedade. No caso de Euclides, o campesinato do interior da Bahia, no final do século 19; no caso de London, as massas proletárias do submundo social dos excluídos e dos miseráveis de Londres.
Engajamento
Não se trata de uma visão descomprometida ou imparcial, como propõem os manuais contemporâneos de jornalismo, mas de um relato engajado de um militante da causa socialista que viveu na própria pele a fome e a falta de perspectivas. Talvez por isso tenha ele tido, mais do que qualquer outro de sua geração, a capacidade de representar as condições abjetas às quais estava submetido o proletariado. Como mostra o seguinte trecho, a respeito de alguns vagabundos com os quais vagou, à noite, pelas ruas:

Da calçada imunda recolhiam e comiam pedaços de laranja, cascas de maçã e restos de cachos de uva. Quebravam com os dentes caroços de ameixa em busca da semente. Catavam migalhas de pão do tamanho de ervilhas, miolos de maçã tão sujos e escuros que ninguém dizia que eram miolos de maçã, e os dois homens punham essas coisas na boca, mastigavam e engoliam; isso entre 6 e 7 da noite de 20 de agosto, do Ano do Nosso Senhor de 1902, no coração do maior, mais rico e mais poderoso império que o mundo jamais viu.

Na longa introdução que faz sobre o autor, Maria Silva Betti, professora de literatura norte-americana da Universidade de São Paulo, afirma (mas não esclarece a afirmação) que “o livro teve uma recepção apenas parcialmente favorável por parte da crítica, que apontou como defeito principal a falta de ‘dignidade literária’ no tratamento do assunto escolhido”. Mas o próprio London afirmaria: “Nenhum outro livro meu hauriu tanto meu jovem coração e minhas lágrimas como esse estudo da degradação econômica dos pobres”.

A percepção lúcida de que “o Abismo londrino é um imenso matadouro”, no qual “no ano passado, e ontem, e hoje, e neste exato momento, 450 mil criaturas morrem miseravelmente no fundo desse inferno social chamado ‘Londres'”, é expressa no livro com registros de depoimentos, relatórios, cópias de processos judiciais, dados e estatísticas retirados de instituições da época.

Com base, por exemplo, nas estatísticas de que 1.292.737 pessoas ganhavam 21 xelins ou menos por semana, e de uma relação de preços que incluem produtos e serviços básicos, como aluguel, pão, carne, carvão e açúcar, London mostra como é diminuta a margem para desperdício, por exemplo, numa família de sete pessoas.

Toda a quantia de US$ 5,25 é gasta em comida e aluguel. Não sobra nenhum trocado. Se o homem comprar um copo de cerveja, a família terá de comer menos e, quanto menos comer, mais comprometerá sua eficiência física. Os membros dessa família não podem andar de ônibus ou de bonde, não podem escrever cartas, passear, ir ao teatro divertir-se com um vaudeville barato, participar de atividades sociais ou clubes beneficentes, nem podem comprar guloseimas, tabaco, livros ou jornais.

Guerra invisível
O foco principal da reportagem é a constatação de um genocídio subliminar, provocado pelo sistema industrial, no qual todas as pessoas consideradas “ineficientes” são extirpadas e jogadas para baixo, numa “tenebrosa descida rumo ao fundo e à morte”.

A alta mortalidade entre as pessoas que vivem no gueto também tem um papel terrível. A expectativa de vida dos moradores do West End é de 55 anos. A do East End, 30 anos. Isso quer dizer que uma pessoa no West End tem chance de viver o dobro do tempo do que vive uma pessoa no East End. Depois falam de guerra! A mortalidade na África do Sul ou nas Filipinas vai às raias da insignificância. Aqui, em plena paz, é onde o sangue está sendo derramado; e aqui nem as regras civilizadas do código de guerra são respeitadas, pois as mulheres, as crianças e os bebês de colo são mortos com a mesma facilidade que os homens. Guerra! Na Inglaterra, a cada ano, 500 mil homens, mulheres e crianças, empregados nos vários ramos da indústria, são mortos, ficam incapacitados ou são condenados à invalidez por doença.

O relato de London, na primeira pessoa, mostra as agruras vividas pelo autor, junto aos sem-teto (homens cujo companheiro é o “vento que vagabundeia pelo mundo”) para conseguir dormir num abrigo de pobres – verdadeira ante-sala do inferno, mas desejado imensamente pelos vagabundos ante a perspectiva de passar toda a noite vagando pelas ruas frias de Londres, sem poder dormir. Não é de estranhar o conselho que recebeu de um ancião: “Nunca fique velho, garoto. Morra enquanto for jovem, senão vai ficar que nem eu. Eu garanto. Tenho 87 anos e servi meu país como um homem. Recebi três galões por bom comportamento e a Cruz da Vitória, e agora é isto que me dão. Preferia ter morrido, preferia ter morrido. Pra mim, quanto mais rápido melhor”.

Mas, ainda que o jovem repórter quisesse seguir o conselho do ancião, deveria ter muito cuidado para não sofrer outra pena severa: a de tentar o suicídio, considerado crime e punido com rigor. London enumera alguns casos de suicidas malsucedidos, julgados implacavelmente pelo sistema penal de Londres.

O principal problema com essa pobre gente é que não sabem como cometer suicídio e, geralmente, precisam fazer duas ou três tentativas até conseguir. Isso, muito naturalmente, é um terrível aborrecimento para os guardas e magistrados e causa-lhes problemas sem fim. Às vezes, no entanto, os magistrados falam francamente sobre o assunto e censuram os réus pela falta de firmeza de suas tentativas. O senhor R.S…, por exemplo, chefe dos magistrados de S…B…, sobre o caso ocorrido outro dia com Ann Wood, que tentou dar cabo de sua vida no canal: “Se você queria fazer isso, então por que não fez direito?”, inquiriu o indignado senhor R.S… “Por que não afundou e acabou com tudo de uma vez, em vez de nos causar todo esse problema?”

A obra nos permite refletir sobre algumas questões. Por exemplo: que pontos de contato existem entre o tenebroso mundo retratado por London e o nosso próprio abismo social? Há espaço e interesse, em nossos jornais e revistas, para um longo relato mostrando como, de fato, vivem os que estão à margem da nossa sociedade globalizada e neoliberal? Ou, ainda: os jornalistas, hoje, estão suficientemente capacitados para mostrar não meros fatos e estatísticas “objetivos”, mas a experiência humana dos homens e mulheres de carne e osso por eles retratados? E estariam eles motivados o suficiente para ousar viver na pele o que sofrem os excluídos?

Não é fácil responder. Havia, até a segunda metade do século 20, um elemento que parece estar ausente do nosso mundo pragmático, pós-1989: a utopia, a crença de que é possível alcançar a igualdade social e não apenas tirar o máximo possível de vantagens da sociedade na qual vivemos. London era um militante convicto da causa socialista e, por ela, era capaz de sacrifícios, como os que nos mostra em seu espantoso relato.
Sobre o autor
Jack London nasceu em 1876, na cidade californiana de San Francisco (EUA). Publicou cerca de meia centena de obras, entre romances, contos, artigos e reportagens. Escreveu Caninos brancos, Lobo do mar e O jogo, entre outros. Suicidou-se em novembro de 1916.

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Uma ideia sobre “Trilhando a América nos vagões da miséria

  1. jango

    Está aí uma mensagem e um post que enobrecem este blog. A literatura tem, não raras vezes, condições de expressar idéias e experiências que nenhum manual de acadêmico ou de tese consegue captar – aquele sentimento da realidade das coisas e da sociedade. Isto parece uma obviedade, mas é terrivelmente difícil. Por isso devemos valorizar os escritores. Lembremos nosso Monteiro Lobato – um país se faz com homens e livros. Quanto não contribuiu a literatura para os destinos da humanidade ? Outra obviedade, mas muito importante.

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