19:57ZÉ DA SILVA

Tentei matar, mas descobri depois de muito tempo ser impossível. Antes até pensei na lobotomia, mas nunca gostei das cicatrizes que um dia vi no Jack Nicholson Estranho no Ninho. Isso eu esqueci. Mas, e o resto? O tormento vinha como ondas no mar. Às vezes estava tudo calmo, eu na minha vidinha sem graça no trabalho do serviço público, à espera da aposentadoria, dinheirinho contado para as contas e, às vezes, um cineminha sem pipoca. Mais nada. Filhos distantes, ex-mulher em outro planeta. Mas esse sossego sempre foi parte ínfima. De repente todas as ondas me engolfavam e eu via e sentia nitidamente, sob uma nova perspectivas, tudo de ruim que passou. Aquela máquina para amansar o bandalho de Laranja Mecânica para mim seria raspadinha de groselha. Minhas cenas foram e eram reais, agora salpicadas com o tempero da culpa. Como acabar com isso? Às vezes olhava fotografias no álbum para ver se algum sorriso de criança conseguisse apagar o resto, como uma pílula do Dr. Ross. Nada! Piorava porque aí vinham as barbaridades daquele período. Quero matar, mas não quero morrer. Eu sou o passado – e ele não desparece, apenas se incorporou.

 

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