9:42Vigilante

por Yuri Vasconcelos Silva 

Na insônia da madrugada, olhou o relógio e viu piscar duas e quarenta e nove. Mãos na cabeça, pantufas ao lado dos pés. Duas e cinquenta e oito. Levantou desajeitado, pantufas arrastando o piso de taco de madeira, deixou a cama vazia. Luzes fortes dos postes da cidade inundavam o apartamento em cores e contornos amarelados. Janelas embaçadas até a metade. Abriu a geladeira e pegou uma jarra de água. Tomou no velho caneco de alumínio. Gelou-se por dentro. Latido de cachorro ao longe, foi até a janela capturado pelo som. Abriu o vidro, vapor da respiração. Sete andares abaixo, outros vapores sobem das sarjetas. Uma mulher anda com pressa, com roupas de verão no frio da noite. No prédio à sua frente, dezenas de quadrados em uma malha que aprisiona vidas e histórias. Uma ou outra com fraca luz acessa, com sombras na escuridão bisbilhotando por trás da cortina, uma gaiola esquecida no parapeito. Um pássaro morto por hipotermia. Notou num janelão que ia do teto ao piso um homem olhando pra ele. Estava fumando. Também usava pantufas. Sentiu conforto por não estar só e dividir a predileção por calçados. Não podia conversar. Bom, não era mesmo de conversar. Ficou ali mais um pouco, olhando a paisagem morta, observando seu alter-ego no outro prédio. Foi se deitar. Nas noites seguintes, passou a acordar com mais frequência no meio da madrugada. Seu amigo silencioso estava sempre lá. As vezes demorava um pouco para aparecer, mas não falhava. Meses depois, uma forte relação à distância no vazio e no silêncio os conectava. O homem do outro lado quase sempre fumava. O do lado de cá, às vezes trazia um pão para comer devagar. Nunca se encontravam durante o dia. Não se esbarravam nas calçadas da cidade ou em mercados públicos. O espaço e o tempo deles era limitado às madrugadas daquelas janelas altas. Em uma noite qualquer, ele acordou novamente às duas e pouco. Tomou sua água na caneca, pegou um pedaço de baguete e foi pra janela, para observar. Esperou quase a madrugada toda – e seu amigo não apareceu. Assim se repetiu por mais duas ou três semanas. Havia morrido? Não. Surpreso, viu na noite seu amigo retornar à janela. Mas não estava sozinho. Estava com uma mulher. Parecia aquela que costumava vestir roupa de verão e caminhar apressada lá embaixo. Ela então puxou o homem, que sumiu novamente dentro do breu do apartamento. Estava sozinho de novo. Com um aperto no peito, se deitou e tentou dormir. Não conseguiu. Morreu olhando pro teto.

Compartilhe

Uma ideia sobre “Vigilante

  1. eldo leite

    bonito…a habilidade com as ideias e as palavras é sempre instigante…marca da família Silva, sem dúvida…abraço…

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.