9:43Um dia é igual a 23 anos

Vinte e três anos é igual a um dia. Em 24 de outubro de 1994, nessa mesma hora, ele estava injetando mais uma dose de cocaína. A agulha da seringa estava rombuda, sem fio, mas ele forçou e a enfiou na ferida que tinha no braço direito, onde sempre conseguia encontrar a veia. Estava fazendo isso há quatro dias seguidos, depois de comprar 20 gramas do traficante que o abastecia. Na noite anterior teve convulsões no quarto de um outro hotel de Curitiba. Se fosse uma overdose, teria sido encontrado morto horas depois. Lembra hoje que pediu ajuda logo depois não para encontrar o caminho da salvação, mas porque não via mais nenhuma saída para sua vida. Nessa hora, hoje pensa, alguns partem para o ato final, seja tomando uma dose cavalar ou buscando um outro meio. Por isso, do outro lado da linha, quem o atendeu perguntou se ele estava perto da janela daquele prédio. Esta descrição pode chocar, mas no universo paralelo da drogadição há coisas mais terríveis. Vinte e três anos é igual a um dia é o que ele diz aos seus amigos internados na mesma clínica para onde foi levado e hoje presta serviço de voluntário. É a mais pura verdade. A simples e maravilhosa lição da irmandade dos Alcoólicos Anônimos (não existe dependência de uma droga específica, porque dependência é a doença – e ela se manifesta até sem o uso de substâncias lícitas ou ilícitas, como no cado do jogo) é um dos pilares para a retomada do controle da própria vida. “Só por hoje”. Quando conseguiu ouvir de verdade isso, ele começou a se tratar. A descoberta de que podia viver sem o uso, mas apenas por 24 horas, sem a ilusão do “nunca mais”, foi fundamental para começar a entender os outros fundamentos que o mantém “limpo”. Admitiu a doença, colocou o tratamento como prioridade de vida, porque sem isso não existe o resto, reconheceu que seu problema não era a droga em si, mas o que o levou a ela (aí incluído o álcool e maconha, de que fez uso antes de priorizar a cocaína) – e a importância de vencer o fantasma de se olhar e se descobrir um pouco através da terapia. Tinha recaído duas vezes antes de atravessar a porta daquela clínica que hoje é seu porto-seguro nas reuniões, palestras e plantões que faz religiosamente toda semana. Aprendeu que sua doença é incurável, aprendeu a identificar os momentos de risco que corre, aprendeu que, sim, se for preciso tomar remédios de uso contínuo para manter o equilíbrio emocional, é fundamental tomá-los. Mais que tudo, aprendeu que conversar sobre os sentimentos, seja com o terapeuta, o padre, o pastor, o amigo mais próximo e confiável, é a chave para transformar os demônios e fantasmas internos em algo que pode ser enfrentado. A saída mais fácil é a pior. Pedir ajuda, como ele pediu naquele sábado de manhã, é como a boia que aparece aos náufragos. Isso em qualquer momento da recuperação, que é para sempre. A imagem do tubarão que existe dentro da alma dos dependentes é perfeita. Ele está quieto, parado, mas vivo e o alimento para que devore é dado pelos momentos de fraqueza. Ele diz ao “seu time”, como gosta de repetir sempre, que uma das melhores coisas que existem para quem está caminhando em sobriedade é que, ao contrário da maioria das pessoas que, graças a Deus, não têm este tipo de problema, se pode comparar como está e como esteve durante o período das trevas, das catacumbas. A vida, esse mistério entre o nascer e o morrer, de certa forma é desprezada na correria do dia-a-dia. A vida, para quem esteve perto da morte e depois descobriu isso, é o que sustenta e faz segurar os trancos – mas também se iluminar com o que há de melhor, que são as coisas simples e absurdamente belas. O relato dele só foi possível porque sou eu.

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10 ideias sobre “Um dia é igual a 23 anos

  1. Célio Heitor Guimarães

    Força, grande ZB! Saúde, saúde. muita saúde! Só por hoje e para sempre!

  2. Sergio Silvestre

    Pois é, a gente nasce ou morre algum dia mesmo com a vida continuando,quando nascemos de novo comemoramos mais que no dia que viemos ao mundo ,que eu posso dizer é que fico feliz por ter nascido de novo,e ta ai forte que nem toco de aroeira.

  3. Luiz Antonio Mores

    Zé Beto não te conheço mas pelo texto já ou admiro te acompanho nas redes sociais e gostaria de felicitá-lo força amigo que Deus te conserve assim firme no teu propósito parabéns

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