por Domingos Pellegrini
Causou celeuma na Bienal do Livro de Brasília agradecer porque tivemos uma ditadura branda, mas basta comparar com a da Argentina: menos de 300 mortos aqui, 30 mil lá, 100 vezes mais; e, levando em conta a população quatro vezes menor, aquela foi 400 vezes mais violenta. Ou a esquerda quer abolir a matemática?
Mas devemos agradecer também à esquerda, pois a ditadura só foi branda porque a resistência foi pífia: ligas camponesas, grupos dos 11, 500 sargentos, sindicatos aguerridos, tudo a quartelada derrubou como castelo de cartas e bravatas.
Os dois lados queriam salvar o Brasil no futuro: os militares e a direita quiseram impedir futura revolução comunista, e a esquerda queria para o Brasil uma futura ditadura. Só esqueceram de consultar o povo. Mas o povo apoiou o golpe militar. Como depois pediu o fim da ditadura, ao votar em massa na oposição em 1974, elegendo 16 senadores do MDB, entre 22, e 44% dos deputados federais.
Sim, era uma ditadura que tinha partido de oposição, como havia O Pasquim tirando centenas de milhares de exemplares, e teatro, e música e cinema e imprensa driblando uma censura atabalhoada, numa ditadura não só branda como avacalhada, que nos últimos anos tinha generais reformados como testas de ferro em empresas, enveredando pela corrupção – exatamente como depois faria a esquerda ao chegar ao poder.
Como bem disse o general Golbery, esquerda e direita foram simétricas: a primeira se encantando com a luta armada, querendo repetir o milagre militar de Cuba, e a direita se iludindo com tomar o poder e controlar uma sociedade civil tão complexa. Ambos os lados perderam mas não aprenderam.
Os militares bem podiam abrir e revelar tudo, até porque a anistia foi para os dois lados. E a esquerda bem podia instaurar uma Comissão da Verdade Inteira, a investigar os crimes e indenizar igualmente as vítimas da esquerda e da direita. Mas não, a esquerda insiste no “quanto pior, melhor” para um futuro socialista, e os militares insistem em ainda se acharem salvadores da pátria passada.
Enquanto isso, no país real, vimos que a república de privilégios a serviço da direita passou a servir também às elites de esquerda, seus esquadrões de assessores e suas legiões de beneficiários sociais, com o bem-estar social que quase quebrou a Europa e vai quebrar o Brasil se continuar assim, distribuindo renda sem aumentar a produtividade, ou seja, uns trabalhando para outros indefinidamente.
Cresce, nos cidadãos produtivos, o sentimento de que, se depender dos políticos, a única reforma, dentre as tantas de que precisamos, será a reforma das casas para receber mais um carro ou a nova máquina de lavar.
E ainda temos de ver Guevara, Lamarca e Marighella louvados até como grandes estrategistas, embora, na verdade, tenham morrido sozinhos, a solidão de suas mortes indicando seus delírios egolátricos, como a morte dos generais ditadores não teve féretro de massa como Tancredo e Juscelino.
É esse legado de entendimento, olhando para a frente, que não consegue prosperar enquanto os militares não se abrirem e a esquerda não praticar a autocrítica que prega.
Claro que para quem morreu ou sofreu a ditadura não foi branda. Mas, meio século depois, olhando com macro visão histórica, os cidadãos produtivos não querem nem esquerda nem direita, mas o Brasil em frente!
*Domingos Pellegrini, escritor, foi fundador do Comitê pela Anistia de Londrina e militante contra a ditadura.
*Texto publicado no jornal Gazeta do Povo