18:47Impasse eleitoral já foi motivo de retrocesso histórico nos EUA

por Vanderlei Rebelo

Os Estados Unidos já viveram um impasse eleitoral semelhante ao atual e seu desfecho teve consequências catastróficas para o país, abrindo caminho para o apartheid racial e atrasando em pelo menos um século a luta pelos direitos dos negros. Foi nas eleições de 1876, justo quando os norte-americanos comemoravam cem anos da sua Declaração de Independência.

O candidato do partido Democrata, Samuel Tilden, ganhou as eleições no colégio eleitoral e no voto popular, mas seu oponente republicano, Rutherford Hayes, estava determinado a não aceitar o resultado. Ele pediu recontagem dos votos na Flórida, na Luisiana e na Carolina do Sul.

Instaurado o impasse, foi formada uma comissão eleitoral para buscar um acordo. Aí é que Hayes – que entrou para a história como Rutherfraude Hayes – fez a proposta que se revelaria irrecusável para os democratas. Ele seria declarado vencedor, sob o compromisso de, ao assumir a presidência, desmobilizar as forças militares da União instaladas no sul desde o final da Guerra Civil, em 1865.

Como lembra a historiadora Jill Lepore (Estas Verdades – a história da formação dos Estados Unidos, editora Intrínseca), os direitos políticos dos negros só estavam assegurados no Sul escravocrata “sob a mira de uma arma”.

Lembrete histórico: os democratas eram, então, o partido da aristocracia agrária que dava sustentação à escravidão, amplamente majoritário no Sul derrotado na guerra civil, e os republicanos – mais fortes no Norte industrializado – defendiam a abolição (o que sugere uma ligeira inversão dos valores que os dois partidos representam hoje).

Assim, graças à barganha proposta por Hayes, os democratas perdiam a presidência, mas ganhavam algo que lhes era muito mais valioso: a liberdade para institucionalizar um odioso regime de segregação, que só começaria a ser desmantelado – e só muito parcialmente – em 1965, quando o presidente Lyndon Johnson aprovou a nova legislação de direitos civis.

A reação dos sulistas ao fim da escravidão, decretada por Abraham Lincoln em 1863, começou já em 1866 com a criação da Ku Klux Klan, cujos membros se fantasiavam de fantasmas para representar soldados confederados mortos na Guerra Civil que “ressurgiam” de seus túmulos para aterrorizar os negros recém-libertos.

Mas, enquanto as tropas militares unionistas permaneceram no Sul, a Klan semeou mais ódio que medo. Cientes de seu direito de votar, os negros foram às urnas em massa: saíam de casa em grupos para se garantir contra os supremacistas brancos e caminhavam até dezenas de quilômetros para chegar aos locais de votação. Não apenas votavam como também foram votados: alguns deles se elegeram prefeitos e representantes.

Isso começou a acabar em 1876. De mãos livres, a Klan linchou e enforcou mais de 3 mil mulheres e homens negros só entre 1882 e 1930. Os negros eleitos para cargos públicos foram sumariamente afastados.

Logo, os estados e cidades sulistas começaram a aprovar os “códigos negros”, popularmente conhecidos como leis Jim Crow (referência ao personagem de teatro que representa o negro, da forma mais estereotipada possível). As leis fixavam lugares separados para negros e brancos em bares, restaurantes, bondes etc.

Até mesmo a modernização do processo eleitoral contribuiu para alijar o negro de participar das eleições e diminuí-lo como cidadão. No final do século XIX os Estados Unidos adotaram o chamado “voto australiano”, uma inovação do país insolar pela qual o eleitor recebia uma cédula eleitoral confeccionada pela autoridade pública – e não mais pelos partidos – para escolher os candidatos de sua preferência e votar numa cabine indevassável.

Antes disso, às vezes o voto nos EUA sequer era secreto.

Como muitos negros eram analfabetos, tinham dificuldade com a nova cédula (no método anterior, o partido entregava a cédula a seus eleitores com o voto já pronto).

Os estados do Sul correram para aprovar o novo sistema eleitoral, crentes de que isso afastaria a ameaça do voto negro. Mas não ficaram só nisso. Eles também adotaram a chamada Cláusula de Entendimento, que obrigava os homens a passar por um teste oral de conhecimentos sobre a Constituição como pré-requisito para se inscrever como eleitores.

Os eleitores brancos, em sua grande maioria, também desconheciam a Constituição, mas por coincidência não eram obrigados a fazer esse teste. Fosse pela lei ou pela intimidação, o negro lhe teve negado o direito de voto. Como resultado, a Luisiana, que em 1880 tinha mais de cem mil eleitores negros registrados, viu esse número cair para menos de mil em 1910. O mesmo fenômeno se registrou nos demais estados sulistas.

Note-se que, em 1870, o Congresso dos Estados Unidos havia aprovado a 15ª emenda à Constituição, pela qual nenhum cidadão seria impedido de votar “por motivo de raça, cor ou estado de servidão anterior”. Mas o texto se tornou letra morta, sob o olhar complacente da Suprema Corte.

Alguns historiadores norte-americanos já se perguntaram, hipoteticamente, até onde iria o experimento de democracia política e racial que, de forma muito tênue, se praticava nos EUA do pós-guerra civil, até ser abortado pela barganha de 1876.

Trinta anos depois, em célere retrocesso, o país mantinha negros, mulheres e indígenas (e também os migrantes chineses, vítimas de uma lei de exclusão de 1894) sem direito ao voto. As mulheres conquistaram o direito de voto em 1920 e os negros só voltaram a se aproximar de uma urna já nos anos 1960.

Os Estados Unidos de 2020 não têm nada a ver com aquele país de 1876. Mas convém ficar de olho.

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2 ideias sobre “Impasse eleitoral já foi motivo de retrocesso histórico nos EUA

  1. Laertes Rebelo

    Não foi à toa que o movimento que definiu as eleições norte-americanas em 2020 se chama Black lives matter.

  2. Pingback: Impasse eleitoral já foi motivo de retrocesso histórico nos EUA - Blog do Manoel Afonso

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