6:07O mito do heroi a cavalo

por Ivan Schmidt

 

Um dos melhores livros que li ultimamente é Tempos fraturados (Companhia das Letras, SP, 2013), coleção de ensaios do historiador Eric Hobsbawm, morto em 2012 algum tempo depois da entrega dos originais à editora londrina que o publicou. Um dos mais importantes intelectuais do século passado, o autor escolheu o subtítulo “cultura e sociedade no século XX”, tendo em vista que os textos selecionados retratam aspectos da política, economia, ciências e da arte, concedendo ao leitor uma visão de conjunto dos acontecimentos mais relevantes na e para a sociedade de consumo.

 

Dentre os inúmeros temas abordados na forma de artigos, conferências ou resenhas de obras literárias, Hobsbawm historiou a saga do caubói norte-americano, uma das tradições mais arraigadas no país, oportunizando as indagações: “Por que populações de homens montados tangendo rebanhos em geral – mas nem sempre – se tornam assunto de mitos poderosos e tipicamente heróicos? E por que, entre tantos mitos desse tipo, aquele gerado por um grupo social e economicamente marginalizado de proletários desarraigados que surgiu e desapareceu no decurso de duas décadas nos Estados Unidos do século XIX, teve uma sorte global tão extraordinária, e a rigor tão única?”.

 

De saída, mas sem entrar em detalhes arquetípicos junguianos, o historiador assegura que “o mito é essencialmente macho”, a despeito da presença feminina em shows de faroeste e rodeios no período de entreguerras. Ele lembrou, ainda, a participação de mulheres de alta classe na famosa caça à raposa na Grã-Bretanha vitoriana e na Irlanda, vendo nelas mais bravura e audácia porque cavalgavam sentadas de lado, em silhões. A justificativa é que “o estilo predominante da caça à raposa era particularmente suicida”.

 

O mito do homem a cavalo existe num grande número de regiões do mundo e, segundo o historiador alguns estritamente análogos aos caubóis, como os gauchos das planícies do Cone Sul da América Latina, os llaneros das planícies da Colômbia e Venezuela, possivelmente os vaqueiros do Nordeste brasileiro, e os vaqueros mexicanos dos quais “na verdade, como todo mundo sabe, provêm diretamente tanto o traje do moderno mito do caubói como a maior parte do vocabulário próprio de sua atividade”.

 

Ao contrário do que muitos pensavam, Hobsbawm acrescenta que os verdadeiros caubóis “não tiveram nenhum significado político na história dos Estados Unidos”, posto que “os cavaleiros selvagens de outros países foram elementos cruciais, por vezes decisivos, no desenvolvimento social”. Os exemplos estão nos levantes dos camponeses russos dos séculos XVII e XVIII, os haiduks balcânicos e os gauchos argentinos que sob a bandeira de Rosas, “controlaram o país durante uma geração depois da independência”, porquanto “a luta para transformar a Argentina num país moderno e civilizado, era vista essencialmente como conflito da cidade contra a pradaria, da elite instruída e comercial contra os gauchos, da cultura contra a barbárie”.

 

Depois de muitas informações adicionais era inevitável que o historiador chegasse ao mito do caubói moderno eternizado pelo cinema, apontando John Wayne como “apenas” uma versão especial. Hobsbawm lembra que “em termos de pedigree literário, o caubói inventado foi uma criação romântica tardia”, inclusive no cinema que teve em William S. Hart, “o primeiro grande astro de filmes de western”. Logo, o caubói passaria a representar um ideal mais perigoso, ou seja, “a defesa do americano nativo branco, anglo-saxão, protestante, contra os milhões de imigrantes intrusos de raças inferiores. Vem daí o tranquilo abandono dos elementos mexicanos, indígenas e negros, que ainda aparecem nos westerns não ideológicos originais – por exemplo, no show de Buffalo Bill. É nessa altura e dessa maneira que o caubói se torna o ariano esbelto e culto”.

 

O gênero faroeste já estava estabelecido na indústria cinematográfica norte-americana desde o início dos anos 1900. A propósito, o livro Riders of the Purple Sage, escrito por Zane Grey, “serviu de base para quatro filmes entre 1918 e 1941”, sendo que “o caubói de celulose” vivia o tipo de homem romântico (Hart, Gary Cooper e John Wayne) ou o herói indomável e aventureiro, cujo expoente foi Tom Mix, segundo os critérios pessoais de Hobsbawm.

 

O intelectual não chegou a lamentar, mas decerto constatou que o gênero estava praticamente abandonado por Hollywood e outros centros produtores de cinema em países europeus, especialmente na Inglaterra e Alemanha, que no início do século passado se interessavam bem mais pelo western que diretores norte-americanos.

 

Trazendo o assunto para nosso país, resta a lamentável percepção de que o gênero, mesmo obrigatoriamente adaptado à realidade histórica e social do país, jamais despertou o interesse dos produtores locais, apesar das inúmeras vertentes disponíveis. O Brasil viveu longo ciclo econômico com o transporte de tropas de muares entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, mas ao que se sabe nenhum filme chegou a ser produzido com essa temática.

 

Nesse aspecto salva-se a televisão, especialmente a Globo, que produziu séries especiais sobre obras-primas de literatura como Grande sertão, veredas e O tempo e o vento, que contam histórias e estórias do Brasil profundo. O episódio de Canudos também serviu à televisão e ao cinema, com mais de um filme enfocando a tragédia de Antonio Conselheiro. Entrementes, a Guerra do Contestado, muito mais abrangente em termos políticos, econômicos, sociais e religiosos, mereceu apenas um filme – A guerra dos pelados – do cineasta Sílvio Back, produzido com escasso orçamento e muito mais em face do ideal realizador da equipe técnica e dos próprios atores convidados.

 

Mesmo a história emblemática do vaqueiro nordestino transformado no fora da lei Lampião, teria seu único registro cinematográfico somente em 1953 quando a Vera Cruz produziu O Cangaceiro, filme escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos da escritora Rachel de Queiroz. Os intérpretes principais foram Vanja Orico, Alberto Ruschel, Milton Ribeiro e Marisa Prado, com uma ponta desempenhada por Adoniran Barbosa. As locações foram realizadas em Vargem Grande do Sul (SP) e a música (Mulher rendeira) cantada pelo famoso conjunto paulistano Demônios da Garoa.

 

Segundo se sabe, a saga será novamente filmada com locações externas em diferentes pontos do Nordeste. Nesse capítulo, necessariamente devem ser incluídos os filmes de Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade), nos quais se demonstra toda a avidez de habitantes do sertão por vingança e derramamento de sangue, de resto, abundante no imaginário e na literatura popular regional.

 

No frigir dos ovos, não chega a ser relevante a filmografia com base na história brasileira, havendo casos em que alguns personagens são apresentados como autênticos bufões ou retardados mentais. Grandes eventos como o descobrimento, independência e o advento da República mal foram tocados pelo cinema, que tem essa dívida com o público. É claro que se deve considerar a dificuldade da obtenção de recursos para o financiamento de obras de arte, pois nem o governo ou a iniciativa privada demonstram sensibilidade para esse compartimento do setor cultural.

 

É muito provável que nesse momento regurgitem os inúmeros exemplos de uso indevido do dinheiro arrecadado. Talvez por isso se dissesse há alguns anos, com dose cavalar de maldade, que cada grande diretor de cinema no Brasil, mesmo que seus filmes fossem uma droga, já era proprietário de um apartamento de cobertura no Leblon. Mas, como escreveu Dostoievski, essa é outra história…

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