por José Maria Correia
Foram quase trinta anos de vida policial. Como Delegado convivi no mais baixo submundo em combate permanente e implacável com todo tipo de gente ordinária, malandros, estupradores, gigolôs, sequestradores, traficantes, cafetões, assaltantes, receptadores e estelionatários. Desde gente de mão leve como os habilidosos batedores de carteira, os vigaristas e os jogadores de pinguim, os pinguinzeiros, até a turma da pesada e dos roubos a bancos que, armados de metralhadoras, escopetas e dinamite, davam pouco valor às vidas – às próprias de cada um e as das vítimas.
Já os pinguinzeiros (policiais são muito criativos para apelidos), totalmente avessos à violência, são especialistas na arte do ilusionismo: operam com três pequenas cartas de baralho, duas em branco e uma com a figura simpática e inocente do pinguim. Montam uma bancada em uma rua de movimento e desafiam os passantes incautos a descobrir entre as cartas viradas onde está o pinguim. Praticam os movimentos das mãos durante anos, alguns desde a infância – e os olhos conseguem acompanhar. Para despertar a cobiça, um laranja da quadrilha se faz de apostador infiltrado em meio ao público e, simulando ganhar várias rodada, recolhe feliz toda a dinheirama da mesa antes de se retirar do jogo. À vítima que vem a seguir é permitido ganhar as primeiras paradas; porém, depois que se entusiasma e morde a isca, começa a perder e apostar cada vez mais alto para recuperar o prejuízo até que finalmente deixa o jogo arrasada sem um centavo, bolso vazio e relógio entregue; não raro deixa também os sapatos . Alguns são tão iludidos e de boa fé que chegam a retornar com mais dinheiro emprestado de amigos e parentes para pagar a dívida contraída e voltar a jogar.
Esses malandros, que nunca foram agressivos agiram durante décadas tomando o dinheiro dos caminhoneiros que paravam nas bicas de água das serras, entre elas a preferida, a da Onça, na BR 116, onde limpavam os simplórios motoristas e tomavam todo o valor do frete e até mesmo do combustível de retorno. Ainda existem muitos nesse ramo de vigarice especializada e somente sobrevivem em função da ganância dos chamados otários e sempre com a conivência e proteção policial.
Vi esse clássico golpe de jogo de rua em muitos países e até mesmo na região do Times Square em Nova York, mas com um detalhe: os guardas em seus elegantes uniformes azuis observando à distância em discreta cobertura. Hoje a versão moderna do pinguim que mais prolifera graças à mesma taxa de proteção paga pelas quadrilhas é o caça-níquel eletrônico com a placa adulterada para premiar menos de dez por cento das apostas as populares maquininhas.
Mas entre tanta malandragem, enganos e muita corrupção compensou conhecer também em meio à polícia gente de muito valor e de princípios sólidos.
O CAÇADOR
Um deles se destacou demais na minha admiração: o investigador Miola. Quando comandei o Grupo de Operações Especiais do Cope, que combatia o crime organizado, em meados da década de 70, ele era meu braço direito. Estávamos na faixa dos trinta anos e em plena forma física para enfrentar a bandidagem, o pessoal da pesada. Treinávamos tiro e defesa pessoal quase todos os dias – e recebíamos as missões mais arriscadas.
Miola, de nome Itacir, era descendente de gaúchos, e gostava de estar sempre na vanguarda dos confrontos. Eu me preocupava com o seu excesso de confiança e exposição e procurava contê-lo. Ele, entretanto, apreciava o risco, a adrenalina e me contestava com auto-confiança e um sorriso largo: “Não esquenta chefia, sou um cara duro de morrer matado”. No dialeto policial existe a morte morrida , a natural e a matada, o assassinato.
Junto com Miola participei de diversas operações críticas em situações extremas, como a retomada da Penitenciária de Piraquara na rebelião ocorrida em 1989, uma ação conjunta dos comandos das Polícias Civil e Militar que possibilitou o resgate de quarenta reféns, todos servidores do sistema penitenciário, sem uma única baixa e com somente dois feridos, um bastante grave. Naquele trágico episódio o diretor do presídio e meu amigo pessoal, o juiz Aldemar Martins, tomado como refém, teve a garganta quase toda degolada com um facão de açougue e só sobreviveu por milagre .
Miola foi um dos primeiros a ingressar no pavilhão carcerário transformado em inferno. Estava armado com a sua inseparável metralhadora alemã HK, 9 mm., modelo MP5, capaz de disparar 800 tiros por minuto, a melhor do mundo e utilizada pela Swat e as melhores polícias do mundo. Horas depois, já de madrugada – e em meio a uma grande confusão , luz cortada e um fogaréu, terminou o combate feroz. Os onze bandidos que ameaçavam incendiar vivos os reféns estavam todos mortos , entre eles o líder José Oliveira, cuja quadrilha fortemente armada aterrorizara boa parte do Brasil e sequestrara no interior de São Paulo um dos irmãos da dupla sertaneja Zezé de Camargo e Luciano. Miola, coberto de pólvora e sangue, carregou nas costas e para fora dos muros muitos reféns ensanguentados que a ele deviam suas vidas.
A disciplina entretanto não era o forte do policial, preferia a intuição à técnica e a criatividade à estratégia. Quase sempre dava certo. Uma vez deu zebra.
Aconteceu um ano depois , em 1990, eu ascendera ao cargo de Delegado Geral , o Chefe da Polícia Civil. Foi quando bandidos assassinaram covardemente em uma tocaia na região de Guaíra o jovem Delegado de Campo Mourão chamado Inoércio Herrera. O delegado vinha investigando na fronteira com o Paraguai uma poderosa quadrilha de roubo de carretas de café e soja, e de barcos e motores de popa . O chefe do bando mandava sequestrar os motoristas nas estradas e postos de gasolina, levar os caminhões e a carga e deixar as vítimas amarradas no meio do mato. Alguns eram mortos na hora se resistiam , outros morriam de fome, sede ou devorados por animais quando não eram encontrados.
Era conhecido como Gardeman e agia com extrema crueldade no oeste e sudoeste. Apesar de brasileiro, montara um império no Paraguai e contava com um exército de bandidos. De lá enviava ordens para executar quem tentasse interferir nas atividades criminosas.
Para enfrentar a quadrilha reuni os policiais especializados do Cope. Estavam todos indignados com as seguidas mortes e desaparecimentos de caminhoneiros – e o estopim tinha sido a execução do Delegado, que foi emboscado e assassinado com um tiro de fuzil . Miola sempre próximo a mim e conhecedor da região de fronteira pediu para comandar a caçada ao chefão Gardeman e ao pistoleiro Juscelino que teria atirado no Dr. Inoércio. Era questão de honra.
A CAÇADA
Planejamos tudo em detalhes. Escolhi os melhores policiais , viaturas e armamentos. Fiz contato com as autoridades do Mato Grosso e obtive sinal verde para a equipe ingressar, se necessário, no estado vizinho onde teria toda a colaboração. Dispositivo armado dei as instruções finais e entreguei os mandados judiciais de prisão do poderoso Chefão e do pistoleiro Juscelino junto com os relatórios das investigações , mapas e fotografias.
Alertei para os riscos da missão e fui enfático em uma proibição: nenhum policial estava autorizado a ingressar no Paraguai onde Gardeman tinha total cobertura da polícia e do Exército. Miola me olhou com um sorriso do gato que comeu o canário. Pensei comigo: “Valha- me São Miguel Arcanjo , protetor dos policiais desassombrados”. Antes de amanhecer a expedição partiu – a sorte estava lançada.
Nos primeiros dias a equipe seguiu o protocolo. Com apoio dos colegas de Mato Grosso, vasculhou o toda a fronteira. Miola tinha informantes por toda a região, gente que lhe devia favores e buscava ganhar alguma proteção futura ou simplesmente o admirava pela fama de policial implacável e muito temido. Gardeman, entretanto, tinha seus espiões infiltrados e, avisado da expedição, recolheu todos os sicários para o interior da fazenda-fortaleza na cidade paraguaia de Salto Guayrá. Fui informado por telefone da fuga antecipada e do vazamento e determinei o regresso da equipe.
Miola, inconformado, me pediu dois dias a mais para terminar a investigação – e partiu para o voo livre. Levantou que o pistoleiro Juscelino, executor do Delegado Inoércio, estava em um hotel da cidade do país vizinho, distante não mais que uns dez mil metros da base de operações em território brasileiro. O protocolo inicial foi abandonado por conta própria. Ele contratou duas garotas de programa na boate de uma brasileira, conhecida cafetina em Cascavel, uma delas moça de rara beleza havia sido miss em Santa Catarina e jurada de programa famoso de televisão, e as mandou em missão ao encontro do bandido com a promessa de uma grande recompensa em dinheiro que ele daria um jeito de conseguir com as empresas transportadoras, as que arcavam com os prejuízos dos roubos.
Deveriam se hospedar no mesmo hotel, seduzir o pistoleiro e acompanhá-lo no apartamento e, assim, durante a madrugada, quando a segurança estivesse relaxada e sonolenta, Miola invadiria, renderia e sequestraria o bandido até o Brasil, onde seria entregue para a justiça. Tudo não deveria durar mais que dez minutos, se tanto , ação típica de grupos de comando , não muito diferente da que resultou na execução do terrorista Osama Bin Laden no Paquistão, como mostrada no filme A Hora Mais Escura – porém sem tecnologia alguma , comandos ou helicópteros, somente ação direta e homem a homem.
Parte do plano deu certo. Juscelino era mulherengo e levou as atraentes meninas para o apartamento como previsto. De madrugada todos haviam bebido bastante, as garotas deram o sinal combinado na janela e Miola invadiu estourando a porta com um possante ponta-pé capaz de derrubar um touro, uma de suas especialidades como domador de cavalos chucros.
A TEMIDA ZEBRA
O problema foi que o pistoleiro alvo, além de beber, havia se drogado , tinha cheirado muita cocaína, estava brutalmente potencializado e reagiu como um leão. As meninas apavoradas com o confronto surtaram e armaram um escândalo homérico que acordou o hotel inteiro cheio de bandidos. Juscelino alcançou na cabeceira uma pistola automática Brownning 9 mm. e deu dois tiros em Miola que acertaram o colete protetor. O policial, caindo com o impacto, porém com os projéteis alojados somente no escudo, acertou em cheio o estomago de Juscelino com três balaços da infalível metralhadora Heckler & Kock. Os dez minutos previstos estouraram e os capangas da segurança e a polícia paraguaia cercaram o hotel rapidamente.
A tão temida Zebra acontecera .
Juscelino incrivelmente sobreviveu e foi levado ferido gravemente ao hospital paraguaio. Miola foi violentamente agredido pelos milicos, algemado e preso juntamente com os dois colegas do Cope que o aguardavam na viatura descaracterizada na rua ao lado. Dézinho estava no controle da operação. Às quatro horas da madrugada fui acordado com o telefone tocando em minha casa.Antes de atender respirei me preparando. Pelo horário sabia que vinha bomba.
Do outro lado da linha na fronteira do Brasil um dos investigadores com a voz alterada e quase gritando disparou : “A casa caiu chefe. Prenderam o Miola ,o Acir e o Fernando estão sendo levados para a delegacia paraguaia onde o Dézinho manda e vão ser torturados e mortos depois vão dar sumiço nos corpos no rio. O senhor tem que salvá-los.” Estava difícil entender naquele frisson e desespero , mas consegui saber que os que não foram presos haviam sido perseguidos pelo exército e pela quadrilha de Dézinho até a fronteira, escaparam e por pouco não foram mortos no tiroteio.
Naquela altura do campeonato eu estava no prejuízo ,com três policiais civis presos acusados de invadir outro país e tentar matar cidadãoss residentes no Paraguai. Uma encrenca sem tamanho, um incidente internacional. Se não agisse rápido, nunca mais ouviria falar do bando de bravos.
A polícia paraguaia e o exército me tinham como persona non grata pelas seguidas incursões contra o crime organizado e acusações públicas pela mídia que prejudicavam seus interesses e comissões em desvios de carga, furtos e roubos de veículos . Ainda por cima eu havia liderado um protesto contra o General Stroessner , o mais antigo ditador do mundo em atividade, isso em pleno Palácio Iguaçu, durante uma grande solenidade em 1985. Ficara jurado de morte pela turma que mandava na segurança do outro lado da fronteira.
A bronca armada era areia demais para o meu caminhão. Só tinha um jeito, ligar para o Governador,o Ministro da Justiça ou para o Presidente da República. Saí imediatamente de casa ,convoquei alguns Delegados mais graduados, e fui para o Centro de Operações e a Sala de Situação na antiga sede da rua Barão do Rio Branco. Novo telefonema , dessa vez as informações chegavam das meninas de programa que tinham sido levadas com a equipe até a delegacia e depois liberadas. Contaram que Miola , Fernando e Acir tinham sido espancados e colocados nus na cela de tortura. Os sicários tinham enormes cães da raça pitbull treinados para atacar com mordidas e mutilar até a morte com os dentes afiados e estômagos famintos como as feras esquartejadoras de escravos do filme Django, de Quentin Tarantino.
Era questão de minutos.
O SEPULCRO DOS VIVOS
A polícia paraguaia tinha sido treinada assim como as demais congêneres do Cone Sul em técnicas de tortura as mais atrozes e infamante. Um dos instrutores mais conhecidos,precursor da Operação Condor, era o coronel americano Robert Thierry, que ensinava na Academia de Polícia da base militar do Canal do Panamá e visitava com frequência as instalações sul americanas onde seus alunos aplicavam os torpes ensinamentos. Era colega de outro agente da CIA, Dan Mitrione, responsável pela seção brasileira, lotado em Belo Horizonte e que andou também por Curitiba dando instruções na antiga DOPS, a polícia de repressão que fechamos em 1992 quando mandei abrir pela primeira vez na América Latina os arquivos secretos da ditadura militar. Mitrione acabou executado em agosto de 1970 durante um sequestro para libertar presos políticos, ação organizada pelo grupo guerrilheiro Tupamaro integrado à época pelo atual Presidente do Uruguai, o hoje pacifista Pepe Mujica, episódio em que foi baseado o filme Estado de Sítio, dirigido pelo premiado cineasta grego Constantin Costa Gavras e estrelado por Yves Montand. Ao agente Mitrione , o maestro da tortura, como o apelidou o jornal argentino El Clarin é atribuída a frase: “A dor certa no local preciso para se obter a informação desejada”
No Paraguai, durante as três décadas sombrias da ditadura Stroessner, o terror foi institucionalizado por um de seus discípulos, o impiedoso Ministro do Interior, Pastor Coronel – e o local mais temido pelos insurgentes e os que defendiam a retomada do Estado de Direito era o cárcere da repartição denominada Diretoria Técnica, comandada pelo diretor da polícia política de repressão Antonio Campos Alum. O local era conhecida lugubremente como ” O Sepulcro dos Vivos”. Quem ali tivesse o infortúnio de chegar para ser interrogado, às vezes por um simples ato de protesto ou divergência, se tivesse a sorte de sair vivo levaria sequelas graves no corpo e na alma para o resto da vida, tamanha era a ignomínia e a violência dos flagelos semelhantes aos do DOI-CODI brasileiro.
Choques elétricos, mutilações, afogamentos , uso de feras e víboras , imersão de ponta cabeça em tanques de excrementos (pileta) , estupros e violações sexuais, tudo valia e era usado para quebrar a moral do prisioneiro, levá-lo ao sentimento de degradação e aniquilamento da personalidade humana para ao final obter as desejadas informações.
Era sob essa tétrica cultura de sadismo que Miola e seus companheiros seriam torturados até a morte encomendada, se eu não agisse rápido.
O RESGATE
Eu dispunha em minha sala do famoso telefone vermelho de emergência, aparelho ligado diretamente com a residência do Governador no Centro Cívico. Pontualmente as quatro e trinta da madrugada levantei o fone e cerca de alguns segundos depois ouvi a voz inconfundível no tom de Willyam Bonner. Alvaro Dias estava do outro lado da linha.
Seria até natural tomar um esporro no horário, embora o governador primasse pela cordialidade e também pela hora avançada ele percebesse que o assunto era muito sério. Assim, ao ouvir o meu cumprimento constrangido , foi logo perguntando: “Qual é a emergência Zé Maria?”
Tratei de resumir como pude todo o ocorrido e expliquei que a vida dos policiais dependia somente dele e um contato extremamente urgente com o Governador da província paraguaia justificando que era uma missão oficial e exigindo que nossos policiais não fossem vítimas de maus tratos.
Alvaro, ao contrário do que se podia esperar, não demonstrou nenhuma irritação , acionou o plantão da Casa Militar e em alguns minutos falou pessoalmente com o colega Governador, que conhecia diplomaticamente conforme me comunicou em retorno. Consegui acionar um amigo Advogado criminalista respeitado de Guaíra que se dispôs a correr risco e atravessar a fronteira para ver como estavam as lides e dar o imprescindível apoio moral e legal.
Ainda não havia amanhecido o dia , os emissários brasileiros foram recebidos com hostilidade e ofensas e quase apanharam na delegacia. Dézinho tinha colocado a cabeça dos policiais à premio e tinha mais força e autoridade que o próprio governador da província vizinha, um político também comprometido e sem muita moral.
Recebi as novas informações e tive que voltar a importunar Alvaro Dias que já havia perdido o sono e estava tomando café com o pessoal de plantão. O Governador ouviu atentamente o relato e agindo com muito companheirismo e solidariedade sem hesitação ligou para o Presidente do Paraguay, o General Andrés Rodrigues, que havia deposto seu antigo chefe , o decano dos ditadores, o velho Stroesnner, em uma quartelada típica do nosso continente.
A verdade é que os paraguaios sabiam que a operação os expunha perante a opinioo pública mundial e os noticiários de vínculos com as quadrilhas de bandidos traziam muito prejuízo já que os norte americanos vinham descartando tiranetes e aliados muito comprometidos com a criminalidade. Queriam o bônus, mas recusavam ficar com o ônus e promoviam simulacros de governos democráticos. Alvaro também estava indignado com a sucessão de crimes acobertados e a execução do Delegado paranaense e dessa vez de forma drástica exigiu a soltura imediata da equipe e o retorno ao Brasil.
Era voz corrente que o General Presidente tinha negócios escusos ainda maiores e menos visíveis, por certo não queria vínculos públicos com bandidos famosos e desejava atender o Governador do Paraná até porque no Paraguai estrategicamente necessitava muito do Paraná por onde passavam todas as suas mercadorias pelo Porto de Paranaguá entre outros tantos interesses como gigantesca usina Itaipu binacional
Não hesitou em mandar um grupo de militares de sua confiança pessoal e comandados por um Coronel de sua guarda presidencial para libertar o bando de bravos justiceiros.
Depois de muita discussão, bate-boca na delegacia e ameaças de parte a parte a equipe foi retirada do cárcere. Miola que não era de deixar barato, mesmo algemado antes de entrar no jipe deu uma cabeçada e quebrou o nariz de um dos paraguaios que o havia torturado o que quase inviabilizou a operação de resgate. Com as mãos presas nas costas levantou o paraguaio uns dois metros com um pontapé que era mais possante que um coice de burro bravo.
A VOLTA PARA CASA
Cerca de oito horas, com o sol já brilhando sobre Curitiba ,novo telefonema. Dessa vez era o incontrolável Miola se justificando: “Olha Chefe a missão foi cumprida pela metade, estourei a cara do pistoleiro e meti três ameixas no bucho dele. Acho que não escapa. Se escapar volto para completar o serviço nem que acabem comigo. Não lhe falei que eu sou um cara duro de morrer matado?”
Eu estava puto com a confusão e por ter tido que envolver desde o Governador até o Presidente paraguaio na situação criada pela falta de disciplina, mas por outro lado aliviado com o resgate dos três policiais e parcialmente satisfeito com o castigo dado ao mercenário e pistoleiro graças à coragem do Miola. Na polícia as coisas são assim mesmo, meio confusas. Se anda sempre no fio da navalha e os resultados imprevisíveis sempre envolvem danos colaterais.
Dias depois fui agradecer ao Governador por ter salvo a equipe, continuamos durante meses as ações articuladas contra a quadrilha do Gardeman que mergulhava cada vez mais no interior do Paraguai até que desapareceu para sempre junto com o pistoleiro Juscelino. As propriedades e fazendas ficaram abandonadas e saqueada. Soube depois que ambos foram executados. Se foi queima de arquivo dos paraguaios ou justiçamento dos policiais do Paraná para vingar o colega assassinado,nunca saberemos.
Para aprimorar as ações a abandonar de vez o improviso decidi criar com o apoio do Governador um grupo especializado em ações de resgate e missões especiais , como desdobramento do episódio, fundamos naquele ano o Grupo Tigre comandado pelo Delegado Adauto. O Tigre tornou-se referencia nacional e internacional de eficiência pelos casos solucionados sendo visitado até pelos afamados policiais da Swat americana e passou a ser copiado em muitos estados e mesmo em outros países.
O limão virou uma limonada.
ALVARO – OUTRO RESGATE
A proeza dos policiais paranaenses virou notícia nacional e empolgou as polícias de outros estados a incursionar no Paraguai para efetuar prisões. Naquele mesmo ano o famoso Delegado Elson Campelo, titular da temida Divisão de Entorpecentes do Rio de Janeiro, decidiu enviar uma equipe para capturar três sequestradores da poderosa facção criminosa Comando Vermelho em Assunção no Paraguai.
O Delegado, atropelando a burocracia e os tratados internacionais, fretou um jato executivo da Tam com um cheque caução pessoal e sem provisão de fundos e ficou no aguardo. Os cariocas tinham boas informações e capturaram em Assunção três barões do banditismo, Professor, Aloísio e Chocolate. O Professor recebeu o apelido por ser mestre na organização de quadrilhas ,extorsões e sequestros inclusive o do empresário Roberto Medina, criador do festival Rock in Rio , que pagou um resgate de mais de dois milhões de dólares .
Como aconteceu com nosso grupo paranaense, os cariocas, que estavam acompanhados de uma equipe de jornalistas da Globo, também foram presos pelos paraguaios ao tentar deixar o país abrigo do crime organizado. Ainda foram acusados de pirataria aérea e também de sequestros dos procurados.
A cúpula da polícia do Rio, sabedora de detalhes do nosso caso, e com o apoio da direção da Rede Globo que queria resgatar os seus repórteres procurou o Governador Alvaro Dias que novamente foi fundamental para que os policiais pudessem retornar.
Alvaro conseguiu com o Presidente Andrés Rodrigues o que parecia impossível. Os policiais foram expulsos do Paraguai pelo Chefe de Policia Francisco Sanches, porém voltaram com os bandidos capturados.
Toda a matéria jornalística da intrépida expedição foi levada ao ar pelo programa Fantástico graças às fitas escondidas no avião pelos repórteres corajosos.
Nilo, o Professor, e Aloísio, guarda penitenciário, foram condenados a vinte anos. Alberto, o Chocolate também apenado foi encontrado suicidado em uma cela de isolamento do presídio Bangu 1. Deixou uma carta onde se colocava como vítima do sistema, da corrupção institucionalizada e do submundo, mas aí é outra história.
A DESPEDIDA
Um ano se passou e eu havia promovido o Miola para um cargo menos operacional já que ele tinha a cabeça posta à premio pelo bando remanescente de Gardeman. Para
preservá-lo o designei para Superitendente da Delegacia de Estelionatos, uma chefia importante porém mais de gabinete e de trato com criminosos menos violentos.
Uma certa manhã , por volta de dez horas o telefone tocou em minha sala do departamento geral na rua Barão , era o Miola. Ele falava sempre em tom alegre e animado e sabia que eu ficava contente em ouvi-lo expressar o bom astral. ” Chefe, preciso de um favor. Um advogado amigo e à quem devo atenções tem uma ordem judicial para cumprir no Rio de Janeiro e precisa que eu acompanhe um familiar para dar segurança. é um caso delicado e só poderei ir com sua autorização”. Respondi: “Olha Miola se há uma autorização judicial e você irá apenas para dar segurança está autorizado”.
Miola disse – “Não é isso Chefe ,é que a viagem será com um jatinho fretado e eu que fui criado em lombo de cavalo não confio nesses aviões pequenos, geringonça inventada por brasileiro sempre pode não dar certo, – peço que o sr. diga ao advogado que estou proibido de ir, já que não posso recusar. Me quebre essa Chefia.”
Ainda com o telefone na mão andei até a janela, fazia um dia lindo e um céu de brigadeiro.
Tratei de passar tranquilidade: “Não há o que temer Miola, não há uma nuvem no céu , é apenas um voo de uma hora e meia. Pode ir sossegado.
Miola confiava muito em mim e antes do meio dia o Learjet executivo decolava do aeroporto Afonso Pena com a tripulação, o auxiliar do advogado ,uma jovem e delicada mãe que ia buscar o filho levado ilegalmente pelo pai e Miola intuitivamente preocupado e irriquieto e com a pulga atrás da orelha .
Logo após o almoço voltei ao meu gabinete. Havia um alvoroço em toda a Polícia Civil. O noticiário do meio dia informava que o jato fretado desaparecera na rota e não chegara ao destino, o aeroporto carioca Santos Dumont.
Fui acometido por um enorme sentimento de culpa e remorso. Deveria ter atendido Miola que antes nunca havia me pedido absolutamente nada. Mandei equipes por ar e por terra refazer a rota, umas duas horas depois recebi a notícia terrível, o avião provavelmente sofrera uma pane hidráulica nos comandos , mergulhara de bico com velocidade acima de quinhentos quilômetros até abrir uma profunda cratera no solo próximo a cidade de Registro, não havia sobreviventes nem corpos à resgatar.
A tragédia abalou os meios jurídicos e policiais e boa parte da cidade. As vītimas todas eram pessoas conhecidas e muito queridas. Especialistas em acidentes aéreos imaginam que Miola forte e corajoso como era deve ter passado o último minuto de sua vida tentando ajudar os pilotos a trazer manualmente o manche de comando para trás e em desespero para corrigir o mergulho fatal. Organizamos um grande funeral de despedida para Miola. A Policia Civil perdera um de seus grandes heróis , um líder, presidente da entidade de classe de maior prestígio – e eu um amigo leal e insubstituível.
Carrego ainda comigo a culpa involuntária de não ter negado a autorização, mas submeti-me desolado ao destino inelutável. Maktub como dizem os árabes.
E é com nostalgia e muitas saudades que lembro sempre daquele jovem idealista desassombrado, voluntarioso e servidor da justiça ,mesmo tendo às vezes que esquecer os regulamentos me afirmando,-“Não se preocupe comigo Chefia, sou um cara duro de morrer matado “.
De fato, em tantos tiroteios confrontos e missões impossíveis sempre saiu ileso, a não ser pelas muitas cicatrizes, o que não se pode dizer dos que o enfrentaram . Diante do caixão lacrado e vazio onde havia apenas uma insíginia policial, que foi o que se pode recuperar, e perante um cemitério lotado de autoridades e amigos ouvi de um saudoso Presidente do Tribunal de Justiça e Desembargador emérito a afirmação:
“Nenhuma tumba seria grande suficiente para abrigar a bravura do Miola , quem com ele conviveu jamais o esquecerá pois marcou uma época que se encerra com ele, a época da coragem sem limites” .
Eu não esqueci.
Baita lembrança, meu irmão Zé Maria. Tive prazer e honra em conhecer Miola. E era um meninão. Nunca poderia mesmo, morrer matado.
Lendo atentamente a matéria, fiquei relembrando com saudosismo do Miola. Parabéns Dr. José Maria, por ter relatado essa história, tão rica em detalhes, que nos fez voltar ao passado e saber mais um pouco dos bastidores dos nossos heróis da Polícia Civil.
Uau! Compatilhado com os filhos, que estudam Direito e Relações Internacionais.
Parabéns Zé Maria, embrião de um livro? O texto, do começo ao fim, – preso ao leitor, é prenúncio de sucesso.
Abraços
Há muito tempo tenho insistido com o José Maria Correia para que ele reúna, organize e publique suas belíssimas memórias, seja em narrativa histórica, seja em romance. Culto, cinéfilo, amante do litoral paranaense, paizão e avô maravilhoso, Zé Maria tem uma vida pessoal e profissional riquíssima, nos campos da polícia e da política, como protagonista e testemunha privilegiada de fatos marcantes. Deve converter esse belo legado num livro ! Vas bien, José !
Muito bom texto, sou professor de Português e gostei da argumentação das ideias, me recordo desse caso que gerou um incidente diplomático entre Brasil e Paraguai por conta dos policiais brasileiros no Paraguai, acompanhei isso no programa do também finado Alborghetti. Só o fato de alguém pisar em solo paraguaio pra prender bandido, considerando que lá polícia, militares e bandidos são todos iguais, já é um atestado eterno de bravura. Sempre fui apreciador dessas histórias da crônica policial, e agradeço ao delegado Correia pelo site, aliás, o fundador da Guarda Municipal de Curitiba, em Agosto de 1988.