de Manoel de Barros
Um trem de ferro com vinte vagões quando descarrila,
ele sozinho não se recompõe. A cabeça do trem ou seja
a máquina, sendo de ferro não age. Ela fica no lugar.
Porque a máquina é uma geringonça fabricada pelo
homem. E não tem ser. Não tem destinação de Deus. Ela
não tem alma. É máquina. Mas isso não acontece com a
lacraia. Eu tive na infância uma experiência que
comprova o que falo. Em criança a lacraia sempre me
pareceu um trem. A lacraia parece que puxava vagões.
E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões
de trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões
de trem. Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar
a lacraia. E fizemos essa malvadeza. Essa peraltagem.
Cortamos todos os gomos da lacraia e os deixamos no
terreiro. Os gomos separados como os vagões da máquina.
E os gomos da lacraia começaram a se mexer. O que é
a natureza! Eu não estava preparado para assistir
aquela coisa estranha. Os gomos da lacraia começaram
a se mexer e se encostarem um no outro para se emendarem.
A gente, nós, os meninos, não estávamos preparados
para assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia
estava se recompondo. Um gomo da lacraia procurava
o seu parceiro parece que pelo cheiro. A gente como que
reconhecia a força de Deus. A cabeça da lacraia estava
na frente e esperava os outros vagões se emendarem.
Depois, bem mais tarde eu escrevi este verso: com
pedaços de mim eu monto um ser atônito. Agora me indago
se esse verso não veio da peraltagem do menino. Agora
quem está atônito sou eu.