7:59Um dia de craque

por Sergio Brandão

Pra ser chamado de craque o cara tinha que saber tudo de bola. Ele sabia muito, mas não o suficiente para ser chamado assim. Até teria sido profissional se tivesse levado em conta apenas a vontade de jogar futebol e umas poucas qualidades, mas estava longe de ser craque.

Além do mais, não tinha apoio em casa e muito menos nos clubes em que tentou a sorte. Seus pais diziam que era melhor estudar.

Driblava bem, tinha raça, mas isso não era tudo. Mas ele queria ser craque e achava que se treinasse mais, um dia chegaria lá.

Aquela foi uma das últimas gerações de grandes craques produzidos pelo futebol brasileiro. Pelé ainda era o genial em atividade. Todo time profissional tinha pelo menos dois ou três craques. Estas referências deixavam as coisas muito difíceis para talentos medianos como ele, que surgiram na época. Também foram os anos em que os campinhos de bairro começaram a sumir. Os últimos ainda criaram Sócrates, Zico, Falcão, Júnior, mas principalmente toda aquela geração do menino que ainda achava que podia ser craque e que não teve tanta sorte e, quem sabe,  paciência.

A principal qualidade dele era a inteligência. Antevia a jogada. Pensava na frente dos outros. Sabia o que devia fazer e principalmente o que pretendia o adversário. Sua segunda melhor qualidade era o passe – a qualquer distância, mas se especializou nos longos. Estava no caminho: usou a inteligência para investir nisso. Sabia que poderia ser o seu diferencial. Se inspirava em Gerson, meia da Seleção tricampeão de 70. Prestava atenção quando o canhotinha jogava. Viu o craque jogar poucas vezes – e aproveitou todas elas. Parecia ter uma câmera zoom nos olhos. Prestava muita atenção nos detalhes.

Tentava imitar Gerson em tudo. De tanto fazer, acabou conseguindo precisão milimétrica, como diziam os cronistas esportivos.

Foi fazer teste no clube de futebol que sonhava. Esperou alguns dias para ser chamado. Nos primeiros dias não passou do banco. Já quase desistindo, finalmente é chamado. O treinador aponta pra ele dizendo “entra lá no lugar do 9”. Não reclamou. O time adversário era de jogadores protegidos pelo técnico. Entrou de centroavante no time reserva, posição em que tinha pouca familiaridade. Não sabia jogar de costas para o gol. O negócio dele era vir com a bola dominada e achar alguém para o lançamento. Mas sabia que aquela era a grande oportunidade de mostrar o que sabia.

Cinco minutos dentro de campo e nada de a bola chegar nele.  Teve a grande ideia de chegar no cara que fazia o meio –  o 10 do time para dizer: “O treinador mandou você trocar de posição comigo. Vai pra frente!” O cara foi. Assume a meia e quando a estratégia parecia funcionar, o treinador apita parando o treino. Entra em campo, dá três passos além da linha lateral e adverte os dois: “Não quero que troquem de posição, façam o que mando.” Além da advertência do treinador, leva uma bronca do companheiro que não gostou de ter sido enganado. 

Com mais uns cinco minutos em campo, a bola finalmente chega nele. Ela veio por cima, numa sobra disputada na lateral esquerda. Antes dela chegar, ele percebe o zagueiro se antecipando. Como não tinha altura e nem impulsão, fica no meio do caminho e nem vê a jogada ser finalizada pelo zagueiro. Quando percebe, a bola já estava no meio de campo, voltando pra defesa do time dele. O zagueiro cola nele e chega dizendo que ali não tinha pra ninguém. A frase soou como provocação.

Sabia que uma chance como aquela não apareceria tão cedo. Pensou que a próxima oportunidade seria decisiva, não podia perder.

Antes da segunda oportunidade, o treinador tira ele pra colocar outro menino. Diz para voltar no dia seguinte. Pelo menos não tinha sido dispensado, como acontecia com muitos, pensou ele.

Voltou e chegou cedo para ver se dava sorte de entrar logo no início do treino. Não foi o que aconteceu. Foi chamado da mesma forma para entrar na mesma posição do dia anterior.

Lá estava ele de novo de centroavante e logo na primeira disputa o mesmo zagueiro do dia anterior lhe acerta uma cotovelada na boca. Doeu mais na alma. A primeira coisa que pensa é no revide. A segunda bola que chegou nele, subiu com os dois pés na coxa do zagueiro. O menino-zagueiro saiu de campo carregado e, ele expulso pelo treinador que pediu que não voltasse mais.

Decidiu que estava encerrada a carreira de testes nos clubes. Ainda restavam outros times para se oferecer, mas eram  menores. Ele queria ser aceito em clube grande, de preferência no time dele. Achava que estava perto de ser um craque e tudo era uma questão de oportunidade.

Passou algum tempo e acaba esquecendo o incidente com o menino/zagueiro. Decidiu encarar um clube menor. Fez testes em dois e foi aprovado em ambos. Num deles fez até gol, jogando de ponta direita, em um dos testes.

No outro clube, o menor de todos, depois do treino, com todos no vestiário, ela já indo embora, deu um jeito de roubar uma bola que ficou esquecida ao lado do alambrado. Ele olha, ninguém por perto e decide levar a bola pra casa para jogar na rua com os vizinhos. Achou conveniente não voltar mais naquele clube.

Continuou no outro onde também tinha sido aprovado. Na época chamavam de Água Verde e depois passou a se chamar Pinheiros. Lá chegou a jogar duas partidas. A segunda, e última, foi contra o time grande, o time dele, o time do coração onde queria ser chamado. O time do menino/zagueiro que tinha lhe acertado a boca com cotovelo.

O encontro não seria esquecido pelos dois. Antes da partida eles se reconhecem. Só que naquele dia ele estava jogando na posição que sabia. Era meia e jogou o seu melhor.

Deu passe para dois gols na vitória de três a dois. A primeira vitória em 4 anos de história de confrontos entre os dois clubes naquela categoria. Depois do passe para o segundo gol, enfiou na cabeça que tinha que humilhar o menino/zagueiro, mas desta vez tinha que ser na bola.

Na primeira oportunidade fez o drible e faz o passe ao companheiro mais próximo. Com o adversário ainda sentado no gramado, volta e pergunta debochadamente – “Você está bem?”

Termina a partida. Ele sabia que tinha jogado muito. Sem nenhum deslize e,  desta vez, sem aceitar as provocações do adversário.

Sem dúvida foi o principal responsável pela vitória. Sai de campo de cabeça erguida, orgulhoso dele mesmo. Nem os pontapés do zagueiro menino (que foi expulso numa jogada violenta em cima dele), lhe tiraram a concentração.

Quase na boca do vestiário, o treinador adversário, aquele que o tinha dispensado meses antes, oferece nova oportunidade. Fez o convite para voltar a fazer novo teste. Os dois se olharam por alguns segundos.

Ele não responde, dá um meio sorriso, entra no vestiário para nunca mais voltar a tentar a carreira de jogador de futebol.

Preferiu deixar na memória o prazer que sentiu com sua grande proeza daquele dia – um dia de craque.

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3 ideias sobre “Um dia de craque

  1. sergio silvestre

    Tenho meu raspa de tacho que joga com a 10 dos meninos da vila aqui em Londrina.
    Não foi o mais interessado em futebol dos meus filhos,mas é o mais habilidoso,tanto que é o armador do sub 13 com 12 anos e corpinho de 10 aninhos.
    Só que dificilmente vai ser um ponta de lança nos moldes atuais do futebol,porque virou um futebol robotizado,com craques fabricados em laboratorios que são bombados e tem carreira curta como é o caso do Ronaldo,Messi e Cristiano Ronaldo.
    Jogadores como meu filho são fadados a serem quebrados antes do tempo ou ficarem na cerca por causa da pouca marcação que é o futebol hoje em dia que prioriza a retranca.
    Eu ainda sou um pai privilegiado,vendo a alegria de jogar bola do meu filho e seus colegas de clube e as goleadas em todos os jogos.
    Bem diferente do jogo entre Figueirense e Corintians,que o detalhe do jogo foi um milagroso gol para salvar aquela porcaria de jogo num estadio de um bilhão.

  2. juca

    Puxa vida até concordo com ele. Aí temos uma prova de que nesse caso não há influência nenhuma do DNA.

  3. natalício

    no país da bola, pouquíssimos se aventuram a escrever sobre futebol. Esse texto do Brandão – um dos melhores que li ultimamente -, se o Ugo Giorgetti lesse, imaginaria a história transportada para a tela grande. daria um belo filme: sonho, esperança, frustração…
    O Brandão, se tiver tempo e paciência, precisa escrever mais sobre os boleiros e reunir num livro. com essa sensibilidade dele, acho que vai ter mais de uma editora interessada. pra quem ama futebol e literatura, só resta torcer pelo Brandão – até porque a história do garoto-quase-craque também pode ser lida como metáfora do ficcionista que desistiu de tentar publicar o primeiro livro.

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