8:17Sobremesa

por Sergio Brandão

Almocei com a voz de uma senhora sentada atrás de mim. Reclamava da vida. Uma voz forte, um pouco grossa e de um volume não muito comum. Fiquei o tempo inteiro tentando imaginar seu rosto. Em nenhum momento me virei para ver quem era. Estas coisas nunca funcionam comigo. Nunca acerto. Para pagar a conta, ela ficou à minha frente na fila. Cabelo desgrenhado, provavelmente com alguns dias sem ver um pente, morena, alta, calça jeans, uma blusa creme bem justa que revelava mais da metade de uma barriga bem avantajada. Ali ela mudou de foco. Trocou as reclamações que fazia da vida pelas da Europa. O problema é que não havia ninguém junto com ela. Elegia alguém, mirava no fundo do olho e atacava. Não adiantava fazer de conta que a conversa não era com você. Ela falava mais alto ainda, até que a vítima olhasse para ela e dissesse algo. Em alguns casos ela se contentou um sorriso. Claro que lá pelas tantas simpatizou comigo, mas antes passou pelo menino do caixa e o responsabilizou pela crise financeira do outro lado do oceano. E ali pude perceber que não se tratava de conversa para ser jogada fora. Com o menino ela falou sobre o assunto do dia, a dívida pública da Espanha. Chegou até a dizer o que está nos primeiras páginas dos sites, sobre as previsões do governo espanhol, sobre o aumento desta dívida ainda este ano. Comecei a perceber que ela oscilava entre momentos de lucidez, e viagens. Desta conversa virou pra mim e perguntou se eu conhecia a Europa?  Achei que ia engatar a conversa da dívida espanhola, mas me derrubou com uma outra conversa. A bola da vez passou a ser o  marido dela. Um verdadeiro canalha, segundo ela. Tão canalha, disse a mulher, que nem um almoço destes ele é capaz de me pagar. Virou pra mim e disse apontando o dedo: “Você que não é canalha e nem meu marido, pode pagar este almoço pra mim?”  A cena foi tão absurda, inesperada e tão bem amarrada por ela, que silenciou o restaurante inteiro. Todos ficaram me olhando. Fiquei me sentindo o marido canalha por alguns instantes, mas a situação e a construção da situação foi tão envolvente que comecei a rir. Junto comigo todo o restaurante também achou graça, mas do meu constrangimento. Ela se silenciou e continuou me olhando firme, esperando que respondesse. Por alguns segundos ela tirou toda a atenção que estava nela e passou pra mim, sem que eu quisesse. Pelo inusitado, ainda dei uma olhada de canto de olho para ver se não tinha nenhuma câmera escondida. Me passou pela cabeça uma cena desta no domingo, no Faustão. Mas também não queria ser vítima de um golpe. Mas que golpe? Um simples almoço, pensei. Tudo isso deve ter durado uns 15 segundos. Até que respondi que sim, pagaria o almoço. Ela abre um meio sorriso, vem até onde estou, me entrega a comanda, agradece, me deseja uma boa tarde e sai. O almoço dela custou 8 reais e 10 centavos. Almoço sempre ali, nunca a vi, nunca ninguém a viu. Ninguém sabe quem é.

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Uma ideia sobre “Sobremesa

  1. O doido

    Isso é artigo 171, notório, – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento
    combinado com o 126: – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

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