11:27Rouba-se cultura

por Ruy Castro

Em meu tempo, tenho tido a sorte de penetrar em arquivos, coleções e bibliotecas importantes. Em 1967, por exemplo, conheci o arquivo do radialista Almirante –milhares de 78 rpm, documentos e partituras da música brasileira desde 1900, tudo ainda acomodado num anexo do Museu da Imagem e do Som, no Castelo. Não seria absurdo se, de repente, Noel Rosa aparecesse com um Liberty Oval na boca e me pedisse fogo.

Em 1970, saboreei a coleção de caricatura reunida pelo grande Alvarus, em sua casa na Gávea, contendo, entre muitos outros, incríveis originais de Daumier, André François e J. Carlos. Em certo momento, piscando um olho, Alvarus abriu uma porta secreta e saímos no aposento onde ele escondia sua coleção de erotismo e pornografia –uma das maiores do mundo.

Em 1979, estive várias vezes na biblioteca de Guita e José Mindlin. Nenhuma vantagem nisto, porque não há em São Paulo quem não tenha passado horas ali, cercado pela história da literatura e da indústria gráfica brasileira. Em 1993, num apartamento em Botafogo, conheci também os “Arquivos Implacáveis” de João Condé –autógrafos, manuscritos, fotos e bilhetinhos pessoais de e sobre qualquer escritor brasileiro–, que ele publicou semanalmente em “O Cruzeiro” nos anos 40 e 50.

E, em 2009, na Biblioteca de Salamanca, Espanha, pude adentrar a seção de manuscritos e incunábulos –entra-se nela como num cofre– e folhear (sem luvas!) livros de 500 anos.

A coleção de Mindlin está a salvo na USP, mas não sei o que aconteceu às de Condé e Alvarus, que já morreram. Alguém as terá comprado? Lembrei-me delas ao ler que, outro dia, a PF deu uma busca em particulares aqui no Rio e encontrou o raríssimo nº 1 da revista “Tico-Tico”, de 1905, roubado à Biblioteca Nacional em 2010. Pode ser um bom sinal: já se rouba cultura no Brasil.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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