9:27Recife e os dentes de Rembrandt

por Leonardo Padura

ui ao Recife como autor convidado para a 10ª Bienal do Livro de Pernambuco, levando nas mãos a recém-publicada edição brasileira de meu romance “Hereges”. O fato de estar no Recife, e precisamente para apresentar esse romance, tinha para mim uma conotação bastante especial, nascida dos cruzamentos históricos entre essa cidade nordestina e certos acontecimentos muito dramáticos que narro no livro.

Por isso, semanas antes da minha estadia pernambucana, eu já havia marcado uma visita ao local onde funcionou a primeira sinagoga do Novo Mundo, Kahal Zur Israel.

Fundada no Recife em 1636 pelos judeus sefarditas chegados dos Países Baixos, especificamente de Amsterdã, essa sinagoga é um importante sinal histórico da presença dos comerciantes e colonos holandeses que durante quase duas décadas dominaram essa esquina dos territórios hispano-portugueses da América. E que seriam os culpados históricos pelas longas noites de sofrimento e dor de que durante anos padeceu o grande mestre da pintura holandesa Rembrandt van Rijn (1606-69).

Como é sabido, a presença holandesa nessa região brasileira provocou algumas mudanças na economia e na fisionomia do Recife. E uma dessas mudanças foi o aumento da produção de melados extraídos da cana-de-açúcar, cultivo que tinha sido fomentado desde o século anterior especialmente pelo administrador colonial português Duarte Coelho de Pereira.

Os comerciantes holandeses, entre os quais havia vários dos judeus de Amsterdã (os mesmos que fundaram a sinagoga), que fizeram grandes fortunas no século 17, foram os principais introdutores do produto na Europa. E um de seus destinos foi Amsterdã, onde floresceram várias refinarias que se encarregavam de processar os melados pernambucanos para obter açúcar –e balas.

Aquelas balas, que costumavam ter forma cônica, causaram furor na Amsterdã burguesa da época, e dizem que era frequente ver os moradores da cidade andando pelas ruas saboreando a novidade doce.

Como também é sabido, uma das manifestações pictóricas que Rembrandt cultivou com mais frequência foi o autorretrato. Várias dezenas foram conservadas e servem não apenas para entender a evolução técnica e conceitual do mestre, mas também para observar suas modificações fisionômicas e espirituais: sua passagem da juventude plena de esperanças à velhice de perdas sentimentais e frustrações artísticas.

Um estudioso dos autorretratos de Rembrandt advertiu, em uma análise cronológica desses trabalhos, que algo de estranho acontecia com os dentes do artista, que iam escurecendo à medida que passavam os anos. Outros tinham atribuído o escurecimento a processos mais ou menos semelhantes aos ocorridos com algumas de suas outras obras, nas quais Rembrandt utilizou vernizes e tintas que tenderam a escurecer com o passar das décadas e dos séculos.

Foi esse o caso da obra mais célebre do pintor, hoje conhecida como “A Ronda Noturna”, à qual Rembrandt na realidade deu o título de “A Companhia Militar do Capitão Frans Banning Cocq e o Tenente Willem van Ruytenburg” e que, por suas profundidades escuras, foi interpretada como cena noturna quando, na realidade, o mestre tinha pintado um amanhecer. Um amanhecer que escureceu devido aos vernizes, que mudaram a iluminação, fazendo parecer um momento de penumbra em lugar de um instante de luminosidade.

Mas o especialista nos autorretratos advertiu que o processo de escurecimento habitual das pinturas não seguia os mesmos padrões quando se detinha sobre o detalhe dos dentes do criador. Aquele era outro tipo de escurecimento, e… o especialista determinou que se devia a causas físicas, e não a um processo químico de alteração cromática do quadro.

E então se revelou a conexão de Rembrandt e seus sofrimentos físicos com os melados pernambucanos convertidos em balas holandesas. Uma notícia perdida em um diário da época falava das frequentes visitas de Rembrandt ao dentista, que, um a um, foi extraindo seus dentes cariados e enegrecidos pelo consumo excessivo das balas, das quais ele tinha ficado dependente.

Essa dolorosa ligação de Rembrandt com o Recife foi para mim, como escritor, uma revelação valiosa: podia estar ali a origem do mau humor que seus contemporâneos (especialmente seus discípulos) atribuíam ao grande pintor. Porque ninguém pode ter humor pior que uma pessoa que passa a noite em claro, martirizada por uma dor de dentes.

E foi aos melados do Recife que, em “Hereges”, atribuí os acessos de mau humor do mestre holandês. O mesmo romance com o qual cheguei pela primeira vez a esta velha e bela cidade do mítico Nordeste brasileiro.

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