8:01Porvir radioso da era terminal

por Mario Sergio Conti

​Que o romance é uma forma literária em estado terminal, todo mundo sabe desde que a alta cultura se amancebou com o pop. Arte maior da era burguesa, de “Dom Quixote” a “Ulysses”, ele não dá conta da vida pós-moderna. Fredric Jameson até listou os males que assediam o romance.

Ei-los. O predomínio da imagem visual sobre a escrita. As modas literárias, que se dissipam sem que ocorra acumulação estética. A acomodação ao pastiche e à miscelânea. O pacto entre nostalgia cultural (romances de época) e amnésia histórica. A recusa à generalização.

Acrescentem-se à lista conformismo e preguiça. O sujeito diz o que lhe vai pela alminha, bola umas bossas, chama-as de autoficção e desanda a dar palestras. Raros são os romances recentes que sondam a matéria nacional. “Cidade de Deus” saiu há 20 anos; “Pornopopeia”, em 2009.

Romances que buscam a matéria mundial, então, inexistem. “Terminus Radieux”, publicado na França em 2014, é um caso único. Seu título, “Última Estação Radiosa”, alude ao passado, ao tempo em que os PCs viam o porvir radiante do socialismo, e ao futuro, quando a nuvem nuclear se irradiar pelo planeta.

Antoine  Volodine, seu autor, é francês, mas o romance se passa na Sibéria, e os personagens são russos. O ambiente geográfico e a paisagem existencial lembram Tarkóvski (“Stalker”) e Zvyagintsev (“Leviatã”). Zumbis contaminados vagam numa Chernobyl sem fim.

O romance começa com a queda da Segunda União Soviética. O capital triunfou de novo e milícias massacram os comunistas restantes. Três deles escapam para a zona proibida, onde até as baratas foram extintas pela contaminação atômica. Estão nas últimas. Surge um trem.

Ele vai para o fim da linha, para a fazenda coletiva onde vigoram normas e instituições soviéticas. Há o conselho operário fantasmagórico, interrogatórios à lá KGB, cartilhas de materialismo vulgar. Gestos ideológicos grandiosos são repetidos ritualmente num mundo que morreu.

Morreu, mas continua vivo. Vovó Udgul, Matriarca do Panteão Proletário, passou por uma mutação genética e envelhece devagarinho e interminavelmente. Soloviei, o presidente do coletivo, entra nos sonhos de suas três filhas para bisbilhotar o que elas desejam.

Ele é uma mescla de Rasputin, Stálin e Rei Lear. Sua Cordélia, Vassilissa, não tem branco nos olhos; um é totalmente negro e o outro, dourado. Soloviei, um xamã psicopata, some por 90 anos sem explicações. Até o tempo oscila: ora é lento e ora se paralisa.

A trama é contada por meio de recursos ao realismo mágico, ao Livro Tibetano dos Mortos, ao absurdo de Beckett, à ficção científica, a panfletos da esquerda radical. Embora sejam vários os modos literários, o fulcro de “Terminus Radieux” é um só: a derrota da revolução.

Para os vencidos, o passado não passa. O presente é de emparedamento político perpétuo, de repetição neurótica da tentativa de fugir da História. Como a derrota foi de todos, não há humanidade. As pessoas morreram, mas não reencarnaram. É nessa estepe cinza que medra Elli Kronauer, combatente da causa perdida.

Kronauer não é só um personagem. É um escritor francês de verdade, autor de quatro romances publicados pela Médium. Ele não é real no sentido estrito: Kronauer é um heterônimo de Antoine Volodine, que, por sua vez, é o heterônimo de um escritor que oculta o nome verdadeiro.

Volodine, Kronauer, Manuela Draeger e Lutz Bassmann são todos heterônimos desse mesmo autor. Publicaram 40 livros e militam numa vanguarda literária, apresentada no livro “O Pós-Exotismo em Dez Lições, Lição Onze”. (Volodine traduziu para o francês “O Drible”, de Sérgio Rodrigues, colunista da Folha).

“Terminus Radieux”, tentativa de escapar do estado terminal do romance, é uma estranha introdução ao cosmos pós-exótico. É um universo parecido com o nosso.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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