9:09O preconceito na rede global

O que aconteceu com o ator da Globo na noite de anteontem no interior de Pernambuco, durante uma festa de São João, dá a dimensão do quanto estamos longe de ter uma noção do que é o problema da dependência de drogas lícitas ou ilícitas neste país tão ignorante em vários sentidos. Antes de ser notícia no Jornal Nacional, na próprio emissora em que ele trabalha, a rede internacional do escracho mostrou as cenas de um jovem de 45 anos completamente alcoolizado, cercado, caindo no que costumamos chamar de sarjeta, sendo contido e preso por desacato depois de quebrar o vidro traseiro de uma viatura – isso logo após de ter se envolvido em confusão no salão. Foi liberado depois de pagar fiança e, na nota lida no principal telejornal do país, pediu desculpas e assumiu toda a lambança. O que mais chamou a atenção nas imagens gravadas pelos celulares é a voz de um morador local dizendo mais ou menos isso: “Vê se pode, um ator global neste estado…” O ponto central da questão é exatamente este: aquelas cenas tristes poderiam acontecer com quem filmou e fez o comentário. No fundo, as palavras carregam toda a falta de conhecimento e o preconceito arraigado entre os que “sabem beber”, os que não bebem, os que acham que alguém naquele estado tem controle sobre os próprios atos, os que pensam que estes são desequilibrados, vagabundos ou, então, os que se acreditam que os doutores ou famosos, como no caso, um dependente de drogas, se arvoram conscientemente do direito de fazer tais coisas. Quem aí que está lendo estas linhas não tem algum parente ou conhecido alcoólatra e já presenciou cenas parecidas ou até mais “graves”? Alguém já ouviu o famoso comentário sobre estes fulanos do tipo “quando não bebe, é um uma amor de pessoa, um anjo, um grande profissional, uma pessoa de coração enorme?” E quantos desses doentes já foram expulsos de casa e terminaram seus dias morando na rua até morrer de beber? Qual a diferença entre os dependentes de drogas que são galãs de televisão, milionários, desembargadores, escritores, cavadores de buraco, profissionais liberais, médicos, advogados, policiais, porteiros de boates, carrinheiros, estudantes, só para citar alguns exemplos? Nenhuma! O ator estava feliz naquele dia. Foi para a cidade da namorada lançar um documentário sobre uma manifestação popular local. Então, começou a beber. E não parou, porque quem atravessou “a linha” não tem como parar. Aí chegamos a outro ponto de difícil entendimento entre os que têm problema com drogas. Não existe dependência de um tipo específico. A maioria das pessoas sabe que o bonitão das telenovelas se atrapalhou com o uso da cocaína há alguns anos – ao ponto de a redoma que protege muitos deles ter sido estilhaçada com as notícias de atrapalho no trabalho e prisão. É comum, para quem tem o privilégio de ser internado, tanto em clínicas particulares, que custam uma fortuna, ou então em hospitais onde o SUS banca (quando há vagas), o paciente dizer algo do tipo: “Vou parar com a cocaína, com o crack, com a maconha, mas não vou deixar de tomar minha cervejinha”. Ao que parece foi isso que fez o global. Deu no que? Para exemplificar melhor: o signatário teve o primeiro internamento por causa do álcool em 1990. Nunca mais bebeu. Depois, mais dois internamentos por causa da cocaína, a droga substituta, até 1994. Sobre isso, costuma dizer nas palestras que dá: “Sou dependente principalmente das drogas que não conheço, por isso não experimento. Tomo água. Com gás”. Sim, o artista deveria ser contido assim que começou a causar problemas. É naquilo que ele se transforma quando bebe. Cada um, cada um. Há os que ficam calados, há os provocativos, há os violentos, há os que assumem volantes de carros e pilotam feito loucos, matando outras pessoas. Nada disso é desculpa, mas os “normais”, estes, se tivessem um pouco mais  de compreensão sobre esta doença que mata tanto e é ignorada, não praticariam aquilo que chamamos de “expiação”. Realmente é muito bom que alguém famoso caia na sarjeta, brigue, desacate policiais, etc. Porque “não é comigo, nem com alguém da minha família”, não é mesmo? O preconceito contra os que são viciados é tão arraigado que existe entre os próprios dependentes – até que eles compreendam o que é isso. É muito comum um alcoólatra internado olhar para um usuário de crack e dizer que nunca fumou um cigarro de maconha, cheirou cocaína, etc. Você olha para quem está falando isso e vê que ele está em estado quase terminal da sua drogadição, com cirrose, polineurite, o corpo inchado, o rosto parecendo um pandeiro vermelho, etc, e tem certeza de que um dos grandes problemas na recuperação é a capacidade de minimizar o próprio problema. Olhar para o outro é muito mais fácil. Foi o que os que filmaram e divulgaram o as cenas do ator fizeram. Foi o que ele fez ao não compreender que sua doença, além de não ter cura, mas controle, não era apenas o consumo de cocaína, mas de qualquer substância. Ele estava feliz por lançar o filme e, na maioria das vezes, esse é um perigo – existe a ilusão de que se precisa de algo mais para comemorar, não basta a felicidade natural que a vida oferece, principalmente nas coisas normais, no dia-a-dia normal. Então, acontece. Importante, contudo, é saber que estes são momentos de um grande aprendizado – para se saber o quanto é difícil, mas que é possível se manter sóbrio – só por hoje. Sobre o preconceito dos outros, ah, isso não vai mudar, mas também serve de reforço para a prevenção, mesmo porque o jogo é disputado apenas entre quem é portador da  doença e ele próprio.

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3 ideias sobre “O preconceito na rede global

  1. Parreiras Rodrigues

    Me vejo escrevendo o texto do Zé Beto. Não com a propriedade dele. Mais um mês e completo 10 anos sem nem pegar num copo de cerveja, ainda mais que os meus males era as distiladas. Aqui do meu canto, quero, sinceramente, que Fábio Assunção sare. Assim como quero a cura de conhecido pedreiro amigo – dos bons, de amigo bancário…
    Rezem por mim, para que eu continue assim. (eita, rimou!)

  2. Gil

    Muito bom Zé! Parabéns pela coragem dw sempre.
    Atualmente temos “julgadores” demais nesse mundo

  3. Parreiras é gente

    Parreiras Rodrigues:
    – homem de muitos textos, gestos e ações.
    A cultura do côco no Paraná foi introduzida por sua perseverança e trabalho.
    Noroeste do Paraná e o PARANÁ deve muito a você.
    Força.

    Força Zé que sempre toca com maestria neste assunto.
    Força.

    http://www.tribunapr.com.br/noticias/economia/cultivo-de-coco-e-viavel-no-parana/

    http://www.bemparana.com.br/noticia/84928/coco-no-noroeste

    http://www.gazetadopovo.com.br/agronegocio/agricultura/onde-nao-da-soja-o-parana-vai-de-coco-55y5ptiq71jph3j2hile8oiw7

    https://www.youtube.com/watch?v=jVRNMjnN_PM

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