7:04O livro que salvou a vida de José Carlos

por Célio Heitor Guimarães 

Há mais de 40 anos, a Editora Brasiliense criou a Coleção Primeiros Passos, com a série “O que é…”, destinada a explicar, em poucas páginas, o que é o socialismo, o capitalismo, o anarquismo, o racismo, o teatro, o cinema, a utopia, a filosofia e outros ias e ismos. Ao filósofo, educador, poeta, escritor e contador de histórias Rubem Alves, que era (ou fora) do ramo, coube esclarecer o que é religião. Estávamos em 1984.

Rubem começa esclarecendo que “houve tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religião, eram raros”. Tão raros que escondiam esse fato, “como se fosse uma peste contagiosa”.

De repente, alguma coisa ocorreu. “Quebrou o encanto” e “o céu, morada de Deus e seus santos, ficou vazio”. Rubem, a princípio, atribuiu o acontecido ao avanço triunfal da ciência e da tecnologia, que passaram a construir “um mundo em que Deus não era necessário como hipótese de trabalho”.

No entanto, ele faz questão de advertir que, de modo algum, essa mudança ocasionou o desaparecimento da religião. “Só a situação mudou”. “Deuses e esperanças religiosas ganharam novos nomes e novos rótulos”. E Rubem evoca o ensinamento de Ludwig Feuerbach, o filósofo alemão ateu, cujo pensamento foi capaz de influenciar Karl Marx:

“A consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento. A religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos íntimos, a confissão aberta dos seus segredos de amor”.

Curioso: não sou ateu e nada sei de filosofia, acredito numa força superior, que está tanto dentro quanto fora de nós, mas tendo a concordar com o Ludwig…

Rubem certamente concordou, já que, para ele a religião é “teia de símbolos, rede de desejos, confissão de espera, horizonte dos horizontes, a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza”. Além do que, “a religião nasce com o poder que os homens têm de dar nomes às coisas, fazendo uma discriminação entre coisas de importância secundária e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram”.

E exemplifica: “Uma pedra é uma pedra, concreta, visível, nada tem de religioso. Mas no momento em que alguém lhe dá o nome de altar” – sublinha –, “ela passa a ser circundada de uma aura misteriosa, e os olhos da fé podem vislumbrar conexões invisíveis que a ligam ao mundo da graça divina”.

É uma explicação que talvez não convença quem nunca se defrontou com o sagrado. Pensando assim, Rubem vale-se de uma parábola tirada de “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. O príncipe encontrou-se com uma raposa, bicho que nunca havia visto antes. A raposa indagou do príncipe: “Você quer me cativar?”. “O que é isto?” – perguntou o príncipe. Resposta da raposa: “Cativar é assim: eu me assento aqui, você se assenta lá, bem longe. Amanhã, a gente se assenta mais perto. E assim, aos poucos, cada vez mais perto…”. O tempo passou, o príncipe cativou a raposa e chegou a hora da partida. “Eu vou chorar” – disse a raposa. “Não é culpa minha” – desculpou-se a criança. “Eu lhe disse que não queria cativá-la… Não valeu a pena. Agora, você vai chorar!”. “Pois para mim valeu a pena” – retorquiu a raposa. “Quer saber por quê? Sou uma raposa. Não como trigo. Só como galinhas. O trigo não significa nada para mim. Mas você me cativou. Seu cabelo é louro. E agora, na sua ausência, quando o vento fizer balançar o campo de trigo, eu ficarei feliz, pensando em você…”

“E o trigo, dantes sem sentido, passou a carregar em si uma ausência, que fazia a raposa sorrir” – conclui Rubem.

Para saber o que tudo isso tem a ver com religião, você terá de ler o pequeno volume escrito por Rubem Alves para a Coleção Primeiros Passos, já excluído do catálogo da Brasiliense, mas reeditado pelas Edições Loyola, e possível de encontrar no site Estante Virtual. Há também uma versão no google, em pdf.

Cabe-me acrescentar que esse livrinho despretensioso, produzido por Rubem salvou a vida de José Carlos Fernandes. Sim, o nosso Zé Carlos da Gazeta do Povo, professor de jornalismo e o melhor texto da atual imprensa paranaense.

É o próprio Zé Carlos quem conta:

“Foi num momento muito depressivo. Não sei por quais caminhos, chegou às minhas mãos o livrinho O que é religião?, da coleção Primeiros Passos. Conhecia dele [Rubem Alves], àquela altura, Filosofia da ciência, um dos seus best sellers no mundo acadêmico (recomendo). Mas poucas leituras ficaram para sempre como aquele livro de bolso – repito aqui e ali o que o autor disse sobre a ‘memória biológica’, uma benesse da qual nós, humanos, não podemos desfrutar. Precisamos do símbolo e das palavras, do contrário morremos”.

E continua: “Nunca mais nos separamos – e ele [Rubem] nem imaginava. Nas horas difíceis, lembrava de uma frase de O que é religião? – ‘aqueles que se levam a sério, que julgam ter encontrado a verdade, são os que acendem fogueiras para queimar os outros’. Simples como isso. Aprender a não se levar tão a sério virou o meu botãozinho vermelho do Doutor Fantástico. Em cada crise, detonava o mundo de certezas, recomeçando, com mais alegria”.

Rubem Alves e José Carlos Fernandes, tudo a ver.

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