7:23O general civil da revolução

Por Ivan Schmidt

Com a posse de Getúlio Vargas à frente do governo provisório no dia 3 de novembro de 1930, aos poucos começou a ganhar evidência o espírito revolucionário dos membros do Clube 3 de Outubro, agremiação fundada no Rio de Janeiro por gente de influência comprovada no chamado movimento tenentista.

Eram todos, por formação cívica defensores do regime forte e que, por simples apego a essa maneira de pensar e agir adotavam um nome diretamente inspirado pela data da eclosão da Revolução de 30, pregando abertamente a necessidade de manter inalterado o regime de exceção. A observação é do escritor Lira Neto no segundo volume de Getúlio (1930-1945) do governo provisório à ditadura do Estado Novo (Companhia das Letras, SP, 2015).

A base do pensamento desse grupo, cujo mentor mais entusiasta foi Oswaldo Aranha, apregoava que a volta da antiga ordem era a certeza do retorno da politicalha, algo que pretendiam varrer para sempre do Brasil, numa alusão aos ideais da Coluna Prestes. Lira Neto escreveu ainda que “foi para realizar a tarefa de renovar o país que se instituiu, em fins de 1930, a ditadura no Brasil”, declaração que garimpou nas memórias de “um dos mais destacados líderes tenentistas, Juarez Távora, promovido a major pelo governo revolucionário”.

Segundo o biógrafo e historiador Lira Neto,Távora como veterano da Coluna, fiel à ideologia que impregnava a maioria dos revolucionários da longa travessia dos anos 20, acrescentava que “essa obra prévia de desentulho, a ditadura só poderá dar por concluída quando houver separado, criteriosamente, o joio do trigo, os elementos imprestáveis, inadequados ou apodrecidos dos esteios bons que também se encontram sob os destroços da velha ordem”.

Em meio a esse caldo de cultura, tornou-se inevitável o choque entre as facções que formavam o núcleo de apoio ao governo provisório. “A prometida coalizão se revelara impossível. Os liberais acusavam os tenentistas de usar Getúlio como fachada civil para impor uma ditadura militar ao Brasil, por meio do controle e da influência que exerciam sobre o aparelho de Estado. Por sua vez, os tenentistas acusavam os liberais de não desejar realmente mudanças profundas para o país, mas apenas paliativos reformistas, ou seja, a mera substituição de uma oligarquia por outra”, escreveu Lira Neto.

Por desinteresse ou maquiavelismo, Getúlio dava mostras inequívocas de que não desejava imiscuir-se na beligerância retórica dos membros e apoiadores de seu governo, mergulhados num ambiente político “mutável e indefinido”, no qual o chefe só interferia quando não houvesse melhor alternativa que o silêncio e o mutismo habilmente cultivados pelo estancieiro de São Borja.

Lira Neto lembra que o movimento popular se organizou nas ligas pró-Constituinte, em todo o país debaixo de forte pressão da opinião pública. Em dezembro de 1931, Getúlio pediu ao ministro da Justiça Maurício Cardoso a elaboração de um esboço de legislação eleitoral, “com o qual pretendia aplacar as críticas dos que o acusavam de querer se perpetuar no poder e de governar o país ao arrepio das tradições constitucionais”.

O novo código eleitoral ficou pronto em fevereiro do ano seguinte, sendo assinado no dia 24, não por coincidência na data exata do 41º aniversário da primeira constituição republicana brasileira, a de 1891, “aquela que a Revolução tornara letra morta”.

Getúlio foi contornando os embates que cresciam no âmago do governo provisório, na medida em que novas frentes se arregimentavam contra ele, dentre elas a ameaça representada pelo golpe tramado por comunistas liderados por Luís Carlos Prestes. Em novembro de 1935 foram atacados a Escola de Aviação, no Campo dos Afonsos, e o 3º Regimento de Infantaria da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, mas os revoltosos foram prontamente repelidos por terra e ar, da mesma forma que as tentativas realizadas em Recife e Natal.

A polícia do regime ditatorial começou a desbaratar o aparato comunista fazendo prisões a cada momento, sobretudo um dos principais chefes do movimento, Ernest Ewert, representante do Komintern no Brasil. Foram presos também Luís Carlos Prestes, Olga Benário e os escritores Graciliano Ramos e Jorge Amado, a médica Nise da Silveira, o pedagogo Anísio Teixeira e muitos outros. Diz-se que os cárceres getulistas chegaram a abrigar cerca de sete mil presos políticos, dentre eles intelectuais, professores e jornalistas.

Na saudação de ano novo do dia 31 de dezembro de 1935, em cadeia nacional de rádio, Getúlio verberou que “forças do mal e do ódio campearam sobre a nacionalidade, ensombrando o espírito amorável de nossa terra e da nossa gente”.

No ano seguinte, recrudesceram as tratativas em torno da sucessão presidencial, com o anúncio da pretensão do governador paulista, Armando Sales, de concorrer ao cargo por uma frente suprapartidária, a União Democrática Brasileira, formada por integrantes do Partido Constitucionalista de São Paulo, Partido Republicano Liberal do Rio Grande do Sul e Partido Republicano Mineiro, além de “lideranças políticas da Bahia, Ceará, Paraná, Rio de Janeiro e Santa Catarina que defendiam o respeito à Constituição e denunciavam os rumores de um golpe continuísta em gestação”, segundo Lira Neto.

Enquanto uma penca de políticos se lançava com vigor à disputa pela presidência da República, entre eles o mais fiel dos colaboradores de Getúlio, Oswaldo Aranha, o presidente tinha em mãos o primeiro esboço do novo texto constitucional redigido pelo jurista mineiro Francisco Campos, cuja proposta básica era um estado ditatorial para o país.

Marcada inicialmente para o dia 19 de novembro de 1937 – Dia da Bandeira – e transferida para 27 por causa das chuvas, numa coincidência com o terceiro aniversário do levante comunista de 35, aparatosa cerimônia cívica com missa solene e hasteamento de gigantesca bandeira nacional e a queima das tradicionais bandeiras dos estados, na Praia do Russel próxima ao Palácio do Catete, simbolizava o “sacrifício ao nacionalismo unitário e indissolúvel”.

Getúlio Vargas era finalmente o ditador do Brasil.

O chamado Estado Novo durou de 1937 a 1945, quando a 1º de novembro, escoltado até o aeroporto Santos Dumont por João Alberto, outro homem da Coluna Prestes, Getúlio embarcou num avião da FAB de volta a São Borja. Para o sobrinho, major Serafim Dornelles que o acompanhou na viagem, o chefe teria dito que política é igual a um jogo de xadrez, e que se sentia como uma peça movida de seu lugar, embora com a convicção de que um novo jogo iria começar “com todas as peças de volta ao tabuleiro”, conforme anotou o biógrafo Lira Neto.

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