11:36O Calor de Nina

por Yuri Vasconcelos Silva

Ouvir o som da chuva fina bater nas telhas e gota a gota ricochetear na calha zincada traz o conforto acolhedor de estar em casa. À noite, o frio vence enfim a batalha do dia – e gela tudo que está janela afora. Uma xícara de café quente e pés enfiados em meias de lã reforçam o papel primordial da casa. É o refúgio. Ancestral. O espaço que acolhe e nos protege do mundo externo. Lugar onde máscaras ou armaduras sociais não são necessárias. Única possibilidade de fechar os olhos sem medo, ficar nu, dançar sem vergonha. A casa protege do frio, da chuva e do calor, finalidade primordial desde que uma caverna tornou-se o primeiro endereço da humanidade em algum lugar do continente africano.

Para Nina, no entanto – e é uma pena que apenas para ela e mais alguns –, ao sentir o calor da xícara entre suas mãos com dedos abraçados, a lembrança de seus cães lhe causa ligeira aflição. O último gole e a conferência da temperatura externa são os passos dela antes de sair para o quintal dos fundos. A chuva cai como agulhas de gelo em seu rosto, com cinco graus de temperatura. Nina verifica se seus três bichanos estão aquecidos e bem alimentados dentro do canil. Amontoados no canto mais distante dentro da casinha, Nina percebe que parte do piso cimentado está exposto. Faltam cobertores e tapetes. Ela vasculha a casa em busca de tudo que possa separar o frio do concreto do calor dos bichos. Depois de ajeitar tudo, os cães se reorganizam na casinha mais aconchegante. Nina garante que nenhum vento errante invada o lugar, ao posicionar uma velha cadeira deitada em frente à entrada. Ao final desta operação, ela retorna à casa. Diante da mesma janela, olhando a frente fria chegar silenciosa e invisível,  Nina inicia uma viagem triste, numa espécie de bolha que se expande a partir da sala. Ela pensa na dor física de sentir frio, e o que seria dos cachorros se estivessem sozinhos. Sofreriam nesta madrugada. Em seguida ela pensa nos inúmeros animais de rua que passarão frio e fome nesta madrugada, e em sua impotência diante desta realidade. Até que a linha condutora de seus pensamentos a leva às pessoas que vivem na rua. São muitos e têm vários nomes genéricos. Bêbados, vagabundos, moleques, drogados, mendigos, fedidos e loucos. Mas Nina pensa além. Ela imagina uma história para cada um. História difícil ou não, ela vê crianças e enxerga suas mães. Ela cria sorrisos de alegria para cada um deles quando pequenos. São todos crianças ainda, assim como ela às vezes se vê.  Além da dor do frio, sentem a dor de entender e lembrar de tudo. A solidão, sentir fome, o desprezo dos outros, não ter um lugar para ser livre como Nina em sua casa. A falta de um refúgio, básico a todo ser humano, acelera a destruição de suas vidas. Aliviam com bebidas ou drogas, que também aceleram o caminho para a cessação do pesadelo que é viver. Para Nina, sentir compaixão por animais ou pessoas não carece de hierarquia de importância. São seres que, igualmente, buscam algum tipo de felicidade e evitam o sofrimento. Ela considera que o importante é sentir e tornar isso um impulso para alguma ação.

Nina não conseguiu dormir direito durante à noite. Pela manhã, verificou seus bichos, passeou com eles e depois abarrotou seu carro com cobertores novos. Passou a tarde distribuindo as mantas. Não é muito para um problema tão complicado, mas fez toda diferença para a bolha de Nina.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

 

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Uma ideia sobre “O Calor de Nina

  1. Ticiana

    Caiu um cisco aqui no meu olho. Tão puro, tão singelo e tão arrebatador. Nina sente, sabe e não hesita. Mora em uma casa especial, sua alma de criança. Simples, ela não se detém frente a toda essa complexidade que é o ser humano e mesmo no frio gélido da noite, não congela seus sentimentos. Por isso olha através de sua bolha e enxerga além. Vê o ser que todos nós somos, humanos e animais, desprotegidos, inseguros, inquietos, mas vivos. Nina é um nome bonito e faz juz a isso.

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