6:47O aprendiz de Damasco

por Ivan Schmidt

 

Dia desses li num jornal a pergunta: “Quem é o pior: Hitler ou Assad?”. É difícil responder se levarmos em consideração a formidável distância que separa a maldade do cabo austríaco e a do ditador sírio. Hitler foi o responsável direto pela morte de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo os compatriotas alemães, enquanto Assad horroriza o mundo com a desumana crueldade com que trata os adversários políticos.

 

É visível o mal-estar dos governos dos países industrializados (EUA, Alemanha, Inglaterra e França) e seus aliados, em face do morticínio do último dia 21 num bairro de Damasco, com centenas de vítimas entre idosos, adolescentes e crianças, mortos com o emprego de armas químicas.

 

É possível que no momento em que esse comentário estiver sendo lido, Barack Obama, François Hollande e o primeiro-ministro David Cameron já tenham dado ordens (mesmo com a oposição da Rússia) para ataques de retaliação contra alvos militares ou complexos industriais localizados em território sírio.

 

Comentou-se que os alvos estratégicos estariam localizados em Damasco, Alepo, Hammas e Homs, de onde saem armas e equipamentos militares. Há informações sobre a existência de um laboratório na histórica cidade de Alepo, centro de produção das armas químicas usadas contra a população civil de Ghouta, povoado situado nas imediações de Damasco, onde morreram mil pessoas e 3,6 mil foram hospitalizadas.

 

Não há notícias sobre um provável descontrole mental do ditador Bashar Assad, que imediatamente lançou a culpa do massacre sobre os rebeldes que lutam para expulsá-lo do poder, numa guerra civil que se estende por meses. Mas há os inclinados a jurar que o sanguinário tiranete, apesar da sua cara de santo bizantino, perdeu completamente os limites da razão e do equilíbrio.

 

A partir desse ponto de vista é perfeitamente cabível a pergunta sobre quem é o pior, na comparação entre Assad e o fracassado artista plástico que levou a Alemanha à mais fragorosa de suas catástrofes.

Fui consultar uma das melhores biografias do cabo Adolf, escrita pelo alemão Joachim Fest (Hitler, PocketOuro, RJ, sem data) e, após a releitura de poucas páginas constatei sem precisar da ajuda da psiquiatria ou da psicanálise, que não há (ainda) comparação possível entre os dois personagens, muito embora ambos tenham dado vazão ao traço comum da volúpia pelo poder a qualquer custo.

 

Uma das ações mais diabólicas do führer foi a execução do Endlösung, ou a chamada “solução final” da questão judaica. Entretanto, Fest escreveu que ainda hoje (o ano era 1973) paira certa obscuridade sobre o momento em que Hitler tomou a decisão, “pois não existe qualquer documento sobre o assunto”. O biógrafo lembra uma frase encontrada no diário de Goebbels que ilumina a real intenção do ditador, que só usava metáforas ao se referir ao assunto: “Nisso também o führer é o paladino e porta-voz da solução radical”.

 

Já no início dos anos 30, Hitler havia solicitado a elaboração secreta de “uma técnica de despovoamento”, não importando se isso significasse o extermínio de povos inteiros. Fest transcreveu o insano argumento: “A natureza é cruel, por que não o seríamos também? Eu envio a flor dos alemães para a tempestade de aço que será a guerra, sem experimentar qualquer remorso pelo precioso sangue que vai ser derramado; por que então não tenho o direito de exterminar milhões de seres pertencentes a uma raça inferior e que se reproduzem como vermes?”.

 

Não foi por acaso que em meados de 1938, já sob a indiscutível iminência de nova guerra a alta oficialidade do exército alemão tinha delineado um plano para a derrubada de Hitler. Uma das providências foi o recrutamento de Karl Bonhoeffer, diretor dos serviços de psiquiatria do Hospital de Caridade de Berlim, que segundo Fest “presidiria uma junta médica encarregada de atestar que Hitler era louco”.

 

O plano sinistro do führer de vez em quando era ventilado pelos integrantes do Bureau da Raça e da Colonização, bem como no Ministério do Exterior, “e que consistia em fazer da grande ilha de Madagascar um imenso gueto com cerca de 15 milhões de judeus”, mas isso parecia “ir contra os projetos de Hitler nesse ponto essencial”, escreveu Fest.

 

De acordo com a biografia em foco, antes do fim de 1939 começaram as primeiras deportações para os guetos do governo-geral (a Polônia), “mas a decisão concreta de Hitler sobre o assunto do extermínio em massa aparece na época da preparação ativa da campanha da Rússia”. A partir de então “a missão particular” de Himmler nas zonas da retaguarda “representa a primeira indicação evidente de um plano de massacre em larga escala”. A revelação foi feita por Hitler em discurso no dia 31 de março de 1941 e dois dias depois, numa conversa de duas horas com o führer, Alfred Rosenberg, auxiliar próximo de Hitler, confiou a seu diário: “Jamais esquecerei o que não vou anotar hoje”.

 

A ordem definitiva foi dada quatro meses depois, no dia 31 de julho, quando Göring comunicou a Reinhard Heydrich, chefe da segurança do Reich, que este deveria “proceder à solução final da questão judaica”. Longos comboios ferroviários passaram a ser utilizados para o transporte de cidadãos judeus sistematicamente recolhidos e amontoados em todas as partes da Europa. O destino era ignorado, mas os boatos falavam de novas cidades construídas nos territórios do Leste. Todos sabem onde esses trens foram desembarcar seus passageiros.

 

Aos funcionários encarregados da execução das ordens (Eichmann confessou ter sido exemplar no cumprimento do dever), os judeus eram apresentados como promotores de resistência armada ou portadores de infecções endêmicas. O líder máximo, no entanto, manteve calculado silêncio sobre o assunto, que não apareceu em nenhum de seus discursos, memorandos, documentos ou mesmo nas memórias dos que lhe foram mais íntimos. “Ninguém ousou arriscar-se a falar das reações de Hitler aos relatórios dos grupos de intervenção, ninguém especificou se ele via ou exigia filmes, fotos ou se ele próprio tinha intervindo nessas atividades por meio de incentivos, elogios ou censuras”, revelou o autor.

 

Um dado esclarecedor foi escavado com perícia de arqueólogo por Joachim Fest, ao remexer nos escombros morais da vida de Hitler, lembrando os prolixos discursos proferidos pelo golpista do Reichstag. Jamais tentou ocultar suas tendências revolucionárias e a propensão de levar as coisas aos últimos extremos, embora silenciasse sobre a grande obra de sua vida, a “libertação” do mundo. Fest reputou como sintomaticamente “estranha essa imagem de um salvador que esconde sua ação salvadora no mais profundo do seu coração”.

 

O santo bizantino de Damasco, definitivamente, não é páreo para Hitler, mas precisa ser urgentemente freado em sua fúria genocida para evitar que fique ainda mais chocante. Fest expôs a realidade odiosa daqueles dias ao escrever que “por meio de uma verdadeira indústria de morte em série perfeitamente organizada, pouco a pouco esse trabalho de extermínio foi, pelo menos, subtraído aos olhos da população, racionalizado e transformado com o emprego de gás venenoso”.

 

O desfile de nomes é aterrador: Belzek, Sobibor, Treblinka, Madjanek e Auschwitz, que se tornou “a maior empresa de exterminação humana de todos os tempos”.

 

Fest revelou que certo dia Himmler foi levado a assistir uma execução em massa, “mas quase desmaiou e imediatamente após teve uma crise de histeria”. O aprendiz de Damasco não perde por esperar.

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2 ideias sobre “O aprendiz de Damasco

  1. antonio carlos

    Data vênia, mas querer comparar o ditador sírio com o genocida alemão é um exagero. Uma morte ou um milhão de mortos, para mim, dão no mesmo, porque a vida tem um valor inestimável. Infelizmente vemos genocídios se repetirem e nem nos damos conta disto. As tragédias que aparecem na mídia são as que parecem interessar alguém, ou algum governo.

  2. Ivan Schmidt

    Boa Antonio Carlos! A distância entre Hitler e Assad é muito grande, é fato. Mas você mesmo reconhece que tanto faz matar um milhão ou apenas uma pessoa para renegar o valor da vida. Creio que nesse aspecto, Assad e Hitler são rigorosamente farinha do mesmo saco…

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