9:49No dia do tri havia um grande silêncio

por Tostão

Gostaria de voltar ao dia 21 de junho de 1970, com a idade e a visão do futebol e do mundo que tenho hoje, para observar e entender melhor os detalhes sobre o que ocorreu no dia em que o Brasil foi campeão do mundo pela terceira vez.

Nem tudo o que lembramos é exatamente igual ao que aconteceu. Com frequência, lembramos do jeito que gostaríamos que tivesse ocorrido. É a memória afetiva. Outras vezes, sem perceber, reprimimos, sublimamos e esquecemos alguns fatos.

Para falar deste dia, preciso lembrar de alguns fatos anteriores. Chegamos à Cidade do México para a final dois dias antes da decisão, vindos de Guadalajara, onde treinamos e jogamos os cinco primeiros jogos.

Não tenho nenhuma lembrança de como era o hotel em que ficamos hospedados na Cidade do México. Na véspera do jogo, como ocorre hoje, treinamos e demos entrevistas. A grande diferença é que as entrevistas eram feitas no gramado, depois do treino, com os jogadores suados.

Imagine Pelé cercado por toda a imprensa do mundo. Ele sorria e atendia a todos. Hoje, milhares de anúncios comerciais ficam atrás dos jogadores. As entrevistas são mais burocráticas e formais.

No hotel, me encontrei com Dr. Roberto Abdalla Moura, médico mineiro, oftalmologista, que tinha me operado em Houston, nos Estados Unidos, oito meses antes, por causa de um descolamento de retina. Ele era convidado da comissão técnica, se hospedava na concentração, assistia às partidas e voltava para os Estados Unidos.

Na véspera da decisão, houve uma reunião da comissão técnica com os jogadores. Parreira, auxiliar da preparação física e que tinha se tornado também observador da seleção, assistiu, no campo, ao jogo entre Itália e Alemanha. Ele mostrou, com dezenas de fotos, colocadas em sequência, como se fosse um desenho animado, como a Itália jogava e, principalmente, marcava. Quatro defensores faziam marcação individual, e o líbero ficava atrás dos quatro, na cobertura.

Combinamos que, quando Jairzinho entrasse para o meio e fosse acompanhado por seu marcador, Fachetti, Carlos Alberto avançaria e ocuparia este espaço. Foi o que ocorreu no quarto gol. Antes de a bola chegar a ele, gritei desesperadamente a Pelé, apontando com o dedo, a chegada do lateral. Não precisava, pois Pelé jogava e enxergava muito mais que todos. Combinamos também que eu jogaria entre os quatro defensores e o líbero, para impedir que ele saísse na cobertura. Foi, mais ou menos, o que ocorreu nos gols de Gerson e de Carlos Alberto Torres. Foi também uma vitória tática.

Não dormi bem na noite anterior ao jogo, como ocorria em todas as decisões no Cruzeiro. Pensei na partida. Percebi que, se o Brasil perdesse, seria muito criticado, pois, preocupado com o líbero, teria poucas chances individuais no jogo.

Ao mesmo tempo, acreditava que a estratégia era mais que correta, importante para a vitória, e que, se o Brasil vencesse, minha atuação também seria valorizada. Muito mais que uma postura altruísta de minha parte, foi uma decisão técnica. Tenho também consciência de que qualquer bom jogador poderia fazer a mesma função.

No dia da final, acordamos cedo para tomar café juntos. O jogo seria às 12h, sob um imenso calor. Havia um grande silêncio no café. Todos ansiosos. Isso é bom, pois aumenta a produção de substâncias químicas que melhoram as condições físicas, desde que a ansiedade não ultrapasse certos limites.

De repente, Dario, artilheiro, que estava na seleção por seus méritos, e não porque era o preferido de um ditador, se levantou. Olhou para Zagallo e disse que sonhara que tinha feito três gols e que garantia fazer o mesmo no jogo. Todos deram gargalhadas.

Houve uma grande descontração. Como ocorreu nos cinco jogos anteriores, Dario nem sentou no banco. Roberto era o centroavante reserva.

No ônibus, a caminho do estádio, havia um grupo que gostava do samba e outro, no qual me incluía, que preferia o silêncio. No vestiário, muitos tinham seu ritual. Pelé esticava as canelas em um canto e fechava os olhos. Ninguém sabia se dormia, se sonhava ou se pensava no jogo. Era proibido importunar a fera.

O jogo não teve surpresas. Pelo contrário. A Itália fez marcação individual, deixou um líbero na cobertura dos quatro defensores e cansou no segundo tempo, como é frequente em times que usam essa estratégia.

No intervalo, quando o jogo estava 1 a 1, conversamos, e todos tinham a mesma opinião, de que no segundo tempo ocorreriam os espaços para vencer, como aconteceu. Gerson não deixou de fumar seu cigarro em um canto.

Imediatamente após o apito do árbitro, os torcedores mexicanos invadiram o gramado. Tiraram minha camisa, calção, meias e chuteiras. Fiquei apenas de sunga. Se não fosse a polícia mexicana, teria ficado nu. Essa imagem seria repetida até hoje. Estaria perdido. Para sempre.

No vestiário, dei minha medalha de campeão para o Dr. Roberto Abdalla Moura. Demoramos a sair do estádio para o hotel. Descansamos um pouco e fomos a uma festa, programada pela Fifa.

Antes da sobremesa, arrumei uma carona com um mexicano e saí de fininho, para o hotel, onde encontrei meus pais, que tinham ido à Copa em um grupo de turismo. Choramos os três, abraçados. Imagine a alegria de um pai e de uma mãe, presentes ao estádio, vendo o filho ser campeão do mundo.

Não conseguia dormir. Pensava em tudo. Sentia-me feliz, orgulhoso e aliviado pelo dever cumprido. Pensei que, várias vezes, corri o risco de não estar no Mundial, por causa dos problemas do olho, ou de perder a posição de titular, pois Zagallo, no início, achava que a seleção teria de ter um típico centroavante. No Cruzeiro, eu era um meia ofensivo, ponta de lança.

Pensei em não ir a Brasília, onde a seleção seria recebida pelo ditador Médici, como protesto. Refleti, racionalizei e achei que deveria ir, pelo compromisso com a seleção, com os companheiros, que precisava separar a política do esporte e porque, de Brasília, iríamos para Belo Horizonte, onde haveria uma grande festa. Não poderia chegar à minha cidade sem os companheiros mineiros, Piazza, Dario e Fontana.

Freud gostava de repetir uma frase de Shakespeare: “A consciência nos faz todos covardes”, no sentido de ser racional, prudente, ético, justo e social. Por outro lado, deixamos, com frequência, de lutar por nossos profundos e verdadeiros desejos, nem sempre compatíveis com nossos deveres sociais.

Dormi abraçado ao travesseiro. Sonhei com minha casa, meu canto e com as pessoas que amava.

A vida continuava.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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3 ideias sobre “No dia do tri havia um grande silêncio

  1. sergio silvestre

    Aquela passagem do jogo com o Gerson correndo de braços abertos como fosse sair da tv colorado RQ e de se guardar para o resto da vida,guardar até meus tenros 16 anos,que saia de um seminário para carpir café na região de Londrina.

  2. Carlos

    Por textos como este que eu considero Tostão o melhor cronista esportivo do pais..

  3. leandro

    Façamos uma torcida de ” um só coração” para que o Brasil seja o hexa. O resto, bem i resto o povo saberá dar as respostas a quem merece.
    Também agora não é nem o caso de ter explicação sobre o comportamento de alguns comentaristas deste blog. A explicação vem da adolescência que muitas vezes se transforma em trauma decorrentes dos estudos teológicos em seminários.

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