7:06McDonald’s, 1973

Ilustração deTheo Szczepanski

por Rogério Pereira

Então, morri. Não sei muito bem como. Talvez dormindo. Ou atravessando a rua. De uma coisa tenho certeza: meu projeto de chegar aos 85 anos naufragou. Não alcancei sequer a metade. Mas tudo bem. Morrer não me parece algo tão catastrófico. É apenas deixar de existir. Antes eu não estava aqui e o mundo seguia célere em suas loucuras diárias. Agora, seguirá da mesma maneira. Indiferente a menos um corpo a percorrer a rua deserta. É possível que eu sobreviva mais alguns anos. Poucas pessoas ainda irão se lembrar de mim com amor, ódio ou indiferença. Depois de um tempo, o esquecimento completo. Aí, estarei bem morto. Será rápido. Dúvida não há. Os testamentos e balanços de uma vida inteira sempre me pareceram ridículos. Mas quando se está morto, eles são inevitáveis.

De bens materiais, deixo apenas meus livros. São de meus filhos. Não se preocupem com esta tranqueira toda — o farto banquete para traças gordas, larápias e mal-acostumadas. Estão livres para vender a um sebo (de boa qualidade, por favor) ou incinerar. Minha biblioteca dará uma bela fogueira. Há de calcinar todas as vaidades, principalmente as minhas, que de nada serviram em vida. Na morte, nada faz diferença. Os vermes se alimentam de carne; não de papel. Por sorte, tenho pouca carne a lhes oferecer. Se fartarão rapidamente. E me deixarão em paz com meus ossos na escuridão pacífica do caixão. Se fui magricela em vida, serei cadavérico em morte. Sempre é possível afinar a silhueta. As coleções — coisas banais como marcadores de páginas, postais, figurinhas de jogadores de futebol, canecas, miniaturas de garrafas e de carros —, enviem-nas à reciclagem. Minhas obsessões podem se transformar em algo menos inútil.

Meu testamento é de uma pobreza exemplar: livros e tranqueiras. Em relação às pessoas, acho conveniente lembrar que tive poucos amigos. Três ou quatro durante a curta estada entre os vivos. Foram bons amigos. Nunca me abandonaram, mesmo quando mereci o abandono absoluto. A eles, espero que sobrevivam as lembranças. Lembrança é algo cujo controle nos escapa o tempo todo. Aos meus filhos, além da biblioteca, relego uma breve solidão. Os filhos sempre sobrevivem à morte do pai. O contrário é impossível. A meus pais, não deixo nada. Nem sequer solidão. Minha mãe está morta. Cuidei (mais ou menos) dela nos últimos dias de vida. Morreu agonizando. Foi ruim de presenciar. Mas quando morreu, senti-me aliviado. É um alívio quando nos livramos de um problema. Meu pai deve ficar por aí mais algum tempo. Tentei de todas as formas amá-lo nos últimos anos. Me esforcei muitíssimo. Mas fracassei. Não é fácil amar alguém cuja indiferença e o rancor só aumentam. Acho que não é pecado não amar o pai. A mãe, talvez seja. Agora, pouco me importam os pecados cometidos. Não há arrependimento capaz de consertá-los. Não temo o inferno nem o céu. Não que não acredite em Deus. Apenas somos indiferentes um ao outro; fomos nos afastando à medida que eu crescia. Um dia, a distância se tornou insuportável. A mão de Deus também tem limites. A minha, então, alcança no máximo uma mexerica verde no pé de meio metro. Eu e Deus sempre fomos duas crianças birrentas disputando um brinquedo ordinário.

A minha irmã está morta há doze anos. Não a encontrarei do outro lado da parede escura. Meu irmão é apenas um estranho que a ironia nos colocou no mesmo útero. Quando de lá saímos não nos reconhecemos. Os caminhos se bifurcaram. Cada um para o seu lado, sem a menor perspectiva de que um dia se cruzem. A ele, também não deixo nada. Não saberia o que deixar. Lembro apenas do abraço seco e silencioso quando levaram o corpo da irmã para o cemitério. Ele não disse nada. Eu também não. Deixo-lhe este silencioso abraço. Já é alguma coisa para quem nunca partilhou nada em vida. Na morte, podemos partilhar qualquer coisa, até mesmo uma falsa saudade. Se tivéssemos preservado aquela bola ridícula de plástico que o pai nos deu no Natal, ela seria sua. Mas é mentira que o plástico dura até 400 anos. Nossa bola não sobreviveu a uma desprezível infância.

Aos demais parentes — não sei muito bem quem são — deixo a minha falta de jeito para a morte, um velório desajeitado e minha completa indiferença. Para os demais, declaro minhas frustrações. São apenas duas, mas me acompanharam vida afora: a incapacidade de me tornar jogador profissional de futebol e de nunca ter conseguido desenhar algo que não se parecesse a uma aberração infantil. Jogador de futebol e desenhista. A bola me passava torpes rasteiras — um ganso grasnando e manco seria uma bela imagem para minhas tentativas esportivas. Já o nanquim em punho produzia, no máximo, um desenho ao melhor estilo criança aprendendo a mamar no seio de uma impostora. Fui, confesso, um trôpego homem de intenções gargalhantes.

E digo que apenas suportei ir ao McDonald’s e mastigar feito um boi preguiçoso seus absurdos sanduíches numerados. Ir ao McDonald’s sempre me pareceu a representação máxima da solidão. A batata frita com gosto de isopor, o hambúrguer com gosto de isopor, o pão com gosto de isopor, o queijo com gosto de isopor, o suco com gosto de isopor e água. Quando olhava para as crianças lambuzando de vermelho seus sanduíches, dividíamos uma solidão continental. E por que coloco o McDonald’s neste estropiado testamento? Porque quando entrava nas lanchonetes pintadas de vermelho, amarelo e branco, lembrava-me dos pastéis molengas e gordurosos que o pai trazia para casa. Ele os ganhava do chinês da Praça Generoso Marques, após nenhum cliente sequer fazer menção de comprá-los durante a longa noite. O pai vendia flores; o chinês, pastéis. Se ninguém os quer, darei aos meus filhos. A gordura amanhecida escorria em nossos queixos antes de irmos à escola. Nosso café da manhã sempre fora um frágil improviso.

Mas isso não tem nada a ver com a minha morte. Nem o chinês, nem o McDonald’s. Mas é sempre bom estar preparado para tudo. E se a mão de Deus me estender um pastel de carne molenga e gorduroso? Ou um Big Mac, sem coca-cola?

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