14:45Lições urbanas do caos

por Yuri Vasconcelos Silva 

No caminho entre o escritório e os quitutes da padoca, um casa simples de madeira exibe um quintal salpicado de flores em cores balançando a um metro e pouco de altura, com folhagens e legumes aos pés, junto da terra trabalhada com a dedicação de um morador que desconheço. Sempre que percorro este trajeto, descubro algo novo neste jardim singelo e orgulhoso, criado em uma casa humilde de uma comunidade carente.

Já percorri algumas ruas e vielas desta favela*, e testemunhei exemplos dinâmicos que todo urbanista contemporâneo persegue através de planos e papéis. Muitas vezes a realidade não segue à risca este planejamento. Quando o ideal não se encaixa neste mundo, alguns equívocos alteram, de forma irreversível, a qualidade das cidades onde vivemos. Caminhe por Brasília e teste a hipótese.

Na comunidade em questão, o pouco asfalto por onde caminhei foi comprado e executado pelos moradores. O Estado quase não existe nestes lugares. A natureza humana então recorre a uma solução ancestral para contornar a ausência de amparo. As pessoas se unem em torno de objetivos comuns, de forma muito espontânea, onde um senso de proteção e resguardo mútuo surge naturalmente. Os moradores se conhecem e sabem quando um estranho entra na invisível – mas perceptível – membrana que separa a favela do resto da cidade. A dinâmica social interna resultante gera maior permanência dos moradores na rua, esparramados em seus quintais e debruçados nas janelas, durante o dia ou noite.

As ruas ativas exibem toda sorte de vida pulsante. Sons, crianças, gatos e cães, peladas em campinhos improvisados, corridas e passos apressados em pés descalços na terra batida. As ruas estreitas aproximam as janelas onde conversas e olhares são trocadas. O traçado labiríntico das vias proporciona surpresas a cada esquina, imprimindo uma narrativa de suspense e revelações no caminhar entre as peculiares construções desreguladas. Neste mundo à parte, onde outra lei nasce pautada pelo improviso e urgência da sobrevivência, não há obras regularizadas, negócios são abertos e fechados sem qualquer alvará, a energia e a água deslizam para as casas através de emaranhados de ligações clandestinas.

É um lugar onde o tempo parece correr mais rápido. Todos têm pressa, pois não sabem onde estarão no dia seguinte. Há mais segurança, pois sempre há olhos nas ruas. Olhos reais, não drones ou câmeras wi-fi da cidade esperta. Os veículos circulam mais lentamente, pois não há traçados retos e ligeiros para as ruas.

Sim, há problemas urbanísticos graves na comunidade. Seria ingenuidade ignorar estes aspectos. Mas a vida que pulsa nas ruas da favela exibe tal ritmo que faz o Ecoville parecer um velho moribundo numa clínica. Limpinho, mas morto.

* favela, por carregar significados negativos, este termo é muitas vezes evitado, apesar de bela palavra, em especial pela sonoridade.

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