20:09HORÓSCOPO

de Zé da Silva

Câncer

Eram tão tristes aqueles acordes que ele achou que o compositor um dia olhou as fibras da sua alma, as que o levavam a ficar parado com um aperto no peito, as que o faziam lembrar da solidão doída, as que o faziam recordar os que já foram sem ele poder fazer o que descobriu apenas depois, as que lhe traziam os amores vividos apenas no coração sem voz, as que o faziam lembrar da vontade de abandonar a vida. As cordas do violão que tocava  eram como facas de lâminas finas e afiadas a lhe percorrer o corpo. E ele sentia dor e prazer ao mesmo tempo, porque a música era linda. Ele a ouviu uma só vez e nunca mais ela saiu de dentro. Um rádio de pilha, daqueles antigos, com capa de couro, empoeirado, ensebado, numa prateleira de bar numa cidade do interior do Brasil. Tudo era amarelo porque as luzes eram assim. E o som atrapalhado pelo barulho das bolas de bilhar se batendo depois de arremessadas por pontas de tacos lambuzadas de giz. As paredes eram verdes e a construção de madeira. A rua, de terra vermelha. Uma Rural Willys estacionada do outro lado. Era dele. Que saiu assim que o último acorde soou. Não queria ouvir o locutor dizer de quem era aquela melodia. Ligou o carro. E foi. Cada vez mais para onde a música o levou.

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