14:23Filmes para comer

por Ruy Castro

Na tela, James Stewart e Kim Novak se abraçam e se beijam desesperadamente. As ondas explodem nos rochedos ao compasso da música de Bernard Herrmann e criam uma atmosfera de espuma e mistério. Ele já se apaixonou por ela. Ela não quer, mas está se apaixonando também. O filme, claro, é “Um Corpo que Cai” (1958), de Hitchcock. De repente, vem da minha esquerda um cheiro de chulé. Por coincidência, alguém abrira por ali um Cheetos de queijo. Achei que Stewart e Kim iriam fazer bleargh e desistir do beijo.

Se há um filme de que sou íntimo é “Um Corpo que Cai”. Vi-o três vezes em seu lançamento no Brasil, há uns 400 anos. Revi-o numa gloriosa noite de 1966, quando os cinéfilos do Rio foram ao Cine Paissandu para se despedir dele (a última cópia então existente no país seria incinerada, como mandava a lei). E voltei a vê-lo em 1984, num festival de filmes de Hitchcock com a presença do próprio James Stewart, a quem entrevistei para a Folha (Kim Novak, eu já entrevistara para o “Correio da Manhã” em 1967). E não sei quantas vezes, nos últimos 30 anos, passei-o para mim mesmo, em VHS, laser disc e DVD. Só pode ser amor.

Há dias fui assisti-lo em sessão especial numa tela de cinema. Não há nada igual. Só ela faz justiça à beleza da cenografia e da fotografia e à combinação de música e montagem –Herrmann compôs a música em cima do filme já montado. E também porque estamos numa sala com centenas de pessoas. O cinema exige essa emoção coletiva.

Até que o cheiro do queijo empesteou as filas e as vidas ao redor. Foi quando percebi um incômodo ruminar na vizinhança –eram as pessoas mastigando pipoca. Temi que isso perturbasse a concentração de Stewart e Kim para dizer os diálogos.

A qualquer hora dessas, um personagem vai descer da tela e mandar a plateia ir comer lá fora.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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