7:18Estupidez em série

por Marcelo Coelho

Com tanto autoritarismo à solta, o golpe “que não era golpe” vai acabar se tornando um

Se eu fosse morador de uma comunidade violenta no Rio de Janeiro, talvez não reclamasse demais da presença de soldados na minha vizinhança.

Aceitaria, sem dúvida, que me pedissem os documentos com bons modos e mesmo que tirassem fotografias para me identificar. Não sei se o meu medo seria maior ou menor com a intervenção.

Vendo as coisas de fora, do alto de um edifício com guarita em bairro rico de São Paulo, sinto-me entretanto incomodado ao ver tantos tanques e fardas no cotidiano de uma grande cidade brasileira.

Especialmente chocante é a imagem das toucas ninja com rosto de caveira —recomendo procurar na internet— utilizadas na “abordagem” aos moradores da Rocinha. As Forças Armadas esclarecem que não faz parte do uniforme oficial. Inspirados pelo mundo das histórias em quadrinhos e dos videogames de massacre, soldados acharam que a touca poderia ter um forte efeito psicológico –o que é verdade.

Só não sei se aterroriza mais os traficantes —acostumados a tudo— ou a população. Transmite-se, é claro, a ideia de que ninguém está ali para conversar, para investigar, para separar os “bons” e os “maus”, levando estes à prisão.

O que se mostra é a disposição de matar.

Outra coisa já não faziam o “caveirão” e o Bope (Batalhão de Operações Especiais) que, em vez de surgirem como representantes do poder público, ostentam o clássico emblema dos piratas. É como se dissessem: não viemos reconquistar o território para a lei e para o Estado. Viemos espalhar a morte.

Muitos soldados, por sua vez, sentem medo —e me solidarizo com a sorte deles; como tantos jovens em tantas guerras, são peças descartáveis num jogo dominado pela ambição política, pela falta de alternativas e pela sede de sangue dos que deram a ordem para o combate.

Veja-se, de todo modo, a perversidade de toda a situação. Os soldados precisam usar a touca ninja —claro que sem a estúpida caveira— porque podem ser reconhecidos pelos traficantes. O crime organizado ameaçaria matar seus familiares, por exemplo.

Mas não seria útil, então, tirar da farda o seu sobrenome também?

Para reprimir manifestações em São Paulo, a polícia do governo Alckmin já tem recorrido ao expediente de esconder esse tipo de identificação. Assim, quem cometer crimes estará fora do alcance da lei.

Não é por isso que os bandidos de antigamente usavam máscaras?

Nesse quadro, surge a escandalosa notícia de que o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, está preocupado. Não gostaria que, daqui a 20 anos, uma nova Comissão da Verdade possa apurar os fatos da intervenção.

Ou seja, pode acontecer de os militares assassinarem, sequestrarem, torturarem gente —e não se conseguirá puni-los pelas vias legais e democráticas. Garantida essa impunidade, daqui a 20 anos renascerá o “pesadelo” de uma Comissão da Verdade, que ao que tudo indica não conta com as simpatias do general.

Será que algum militar já saudou a apuração dos crimes cometidos pela ditadura, reforçando o compromisso de que nada daquilo se repita? Ou se prefere que sejam ocultados os efeitos possíveis da atual “liberdade de ação” que se institui no Rio de Janeiro?

Já tivemos, com o impeachment, um “quase golpe” que só não era golpe completo porque se disfarçou em artimanhas legais e não tinha a presença militar.

Esta surge agora, localizada. Chega com toucas ninja e caveirões, reivindicando futura impunidade para os abusos que cometa.

Como em 1964, fanáticos do livre mercado se associam a quem enaltece a tortura e o assassinato.

Como em 1964, corruptos contumazes defendem o golpe em nome do combate à corrupção.

Como em 1964, adversários do “totalitarismo” fazem campanhas em favor da “família” e da censura a manifestações culturais.

E aparece um ministro da Educação querendo impedir o curso sobre o “golpe de 2016” que se oferece na Universidade de Brasília. Não ignoro o quanto de má fé e de mentira se aninha nas defesas da inocência de Lula e do suposto compromisso do PT com a “causa popular”.

Mas o resultado desse novo sinal do atraso e da imbecilidade do governo Temer será o de multiplicar esses cursos —e dar veracidade à tese que sustentam. E, de estupidez em estupidez, o golpe “que não era” vai acabar se tornando um.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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4 ideias sobre “Estupidez em série

  1. Jorge

    A comissão nunca foi da verdade; Ela foi a comissão da meia verdade.
    O regime militar foi o mal menor nas circunstancias de 1964.

  2. Jose

    Só uma pergunta: se pra ele o problema é o exército e não o crime organizado, de qual lado ele está? Ah, já sei, a solução é mais educação, saúde e “inserir” aquele povo todo na sociedade…Ou seja, presença do Estado. Mas o Exército não é justamente o Estado???
    Só pra lembrar, este mesmo colunista já defendeu a intervenção militar no Rio de Janeiro, só que era governo Dilma…
    E comparar 2018 com 1964, é tão verdadeiro quanto escrever que o impeachment da dilma foi “golpe sem mencionar a sacanagem do Renan com o Lewandowski…

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