12:19Domício Pedroso, adeus

O pintor Domicio Pedroso morreu hoje cedo. Tempos atrás tive a honra de conhecê-lo. Se as telas já encantavam, o autor iluminou-as ainda mais. Escrevi um texto na época. Reproduzo como homenagem neste dia de sua partida. Amém. 

Há um cantinho iluminado no Jardim Esplanada que, infelizmente, poucos têm o privilégio de adentrar. Fica numa rua sossegada, dessas que fazem a Curitiba metrópole de trânsito caótico não perder a magia, porque basta virar a esquina e entrar. Ali mora um… um… pintor, se é que esta simplificação caiba para definir Domicio Pedroso. Poeta da alma, já o definiram assim. É mais. É menos. É. Para quem nunca o tinha visto, apenas através de alguns quadros, na figura magra de barba branca, o que inunda são os olhos na moldura de sobrancelhas espessas e grandes bolsas. E o olhar é tão sereno que ao atravessar o portão daquela casa que se apresenta simples para quem passa na rua, deixa-se para trás tudo e passa-se a viver o que, vá lá, se poderia chamar de uma rara experiência sensorial. Leyla, a companheira do artista, ajuda na composição, porque energia pura de olhar faiscante. Domicio Pedroso tem 82 anos e aquele cantinho que pode-se chamar de casa é uma de suas obras. Estudante engenharia civil da Universidade Federal do Paraná, abandonou o curso no terceiro ano. Ficou na Escola de Belas Artes, que frequentava ao mesmo tempo, a porta de entrada no caminho a ser trilhado. Da mistura, saíram os traços do seu espaço, uma sequência de surpresas em forma de cômodos. Ali, faz arte dentro da arte, porque bebeu nas fontes dos mestres, que conheceu e deixou logo no primeiro espaço, para ressaltar que não só aprendeu com eles, mas também porque conviveu, porque seu pai era amigo de De Bona, João Turin, Miguel Bakun. E se o progenitor não pintava, revela Leyla, a mãe, sim, e foi aluna de Alfredo Andersen. O andar pausado, cuidadoso, de Domicio, parece ser um alerta para que o coração do visitante não dispare e o dono não tenha pressa em receber toda aquela carga pictorial e emocional. O anfitrião fala pouco e pausadamente. Viveu e vive do exercício da descoberta mágica do dom que desenvolveu com o olhar e a técnica. Morou na França por três anos, viajou pela Europa – e uma Veneza em arcos azuis e uma Paris de uma viela cinza no inverno nos remete ao externo e ao interno de quem está ali naquele corredor apontando para as telas. Há muito espaço verde no maravilhoso labirinto que é a construção da casa. Há sinais de crianças num espaço ao lado do jardim onde uma piscina azul e um varal onde panos de chão pendurados contrastam com as flores azuis de uma trepadeira que tomou conta de uma árvore. Domicio e Leyla são avós e bisavós. Uma das filhas é diretora de dois museus em Curitiba. Obra da vida. Um enorme salão, de pé direito bem alto, é a catedral da casa. Ali estão expostos dezenas de quadros recentes do artista. Favelas? Na década de 50 Domicio Pedroso morou por um ano no Rio de Janeiro. Subiu o morro, porque isso era possível sem o mínimo receio. O morro e os barracos entraram em sua alma de forma, pode-se dizer, definitiva. Começou desenhando o emaranhado de traços formados pelos barracos. Depois pintou. Depois foi depurando tudo, como ele mesmo diz, e chegou a este ponto que agora está falando, com brilho nos olhos, ao apontar uma pequena luminosidade num dos quadros pendurados. Quem olha ali, imagina tudo, da própria luz de um foco pendurado num fio, as vozes das crianças misturadas com o som da televisão, os móveis, cômodos, sentimentos, pensamentos… e há todo o entorno, em que cada pincelada é um mundo a compor aquele mundo que tomou conta da alma do pintor. As cores que tomam conta do espaço variam – e não é assim mesmo no grande caleidoscópio onde todos estamos? É possível se ver tudo concentrado numa ilha, cercado do mar de um azul de ferir os olhos. O artista faz isso: desperta o desconhecido e o encantamento. A casa de Domicio Pedroso tem tudo a ver com uma daquelas onde há ou não a pequena luz a chamar atenção. Há vielas, escadas. Chega-se ao seu cantinho de trabalho assim. Lá no alto, com grandes janelas que dão para uma Curitiba que pode ser vista num quadro que pintou para o aniversário de 300 anos de sua cidade. Bucólica, como o entorno de seu bairro, mas com espigões no horizonte, que ameaçam invadir mais espaços. O artista provavelmente não tem este temor. Porque fez e cuida da sua grande obra, que são a família, os quadros e a casa no cantinho iluminado do Jardim Esplanada.

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