9:57Demolição

A vida é toda um processo de demolição. Existem golpes que vêm de dentro, que só se sentem quando é demasiado tarde para fazer seja o que for, e é quando nos apercebemos definitivamente de que em certa medida nunca mais seremos os mesmos.

de F.Scott Fitzgerald, citado no artigo “Progresso”, de Vladimir Safatle (leia abaixo a íntegra)

 

Uma ciência, quando começa a estabelecer seu campo, normalmente toma emprestado de outra ciência mais madura alguns de seus conceitos e modos de racionalização. O caso da psicologia, uma ciência retardatária que só conseguirá estabelecer-se enquanto tal no final do século 19, é exemplar.

O mecanismo físico de ação/reação, por exemplo, servirá de base para o desenvolvimento de várias teorias a respeito da produção de sintomas psíquicos e da memória. Não são poucas as teorias psicológicas que compreenderão o sintoma como o resultado de uma reação bloqueada, uma ação diferida que se desdobrará o tempo e no lugar errados.

Mas um dos empréstimos fundamentais da psicologia veio da história e de sua noção de progresso. Tal discussão está longe de interessar apenas a teoria do conhecimento. Ela diz muito a respeito de como nos vemos e como ainda entendemos nossos caminhos. Pois a noção de progresso e regressão será, durante muito tempo, a base para noções de saúde e doença. Ela passará ao campo de uma certa psicologia popular presente entre nós.

Lembremos como a doença mental será vista, por muito tempo, como uma regressão, como uma degenerescência. Como se fosse o caso de fazer o caminho inverso do progresso. Assim, o comportamento dos perversos será aproximado do comportamento polimórfico das crianças. O modo de pensamento em casos de psicose será aproximado do dito pensamento pré-lógico.

Da mesma forma, a maturação será pensada como um processo por meio do qual progredimos por etapas, abandonamos modos mais simples de pensamento até alcançarmos estruturas mais complexas. Como se estivéssemos em uma reta ascendente cujas etapas anteriores devem ser deixadas para trás ou recuperadas apenas de forma lúdica.

Por mais que o modelo de doença mental como degenerescência tenha sido em larga medida abandonado, ele continuou de maneira implícita. Basta ver como a esquizofrenia é, desde Bleuler, descrita a partir de processos de dissociação que recuperarão modelos regressivos.

No entanto, é claro como a noção de desenvolvimento baseada em certo empréstimo conceitual vindo de uma perspectiva teleológica de história continuou entre nós. Isso traz consequências fundamentais que talvez dificultem nossa compreensão sobre o que significam quebras, rupturas e colapsos em uma história de vida.

Pois não será difícil perceber como, em um horizonte marcado pela noção de progresso, as quebras e rupturas têm apenas função negativa. Elas indicam o não poder mais fazer, o não poder mais agir que deve ser curado e superado.

Assim, a própria cura só poderá ser pensada como uma reinstauração de um estado anterior, como uma recuperação. Algo tão presente na linguagem popular quando dizermos de alguém outrora doente: “Ele se recuperou” ou “ele está em recuperação”. Ao voltarmos para trás, poderíamos continuar o caminho de onde paramos.

Abandonar a noção de progresso implica compreender quebras, espaços vazios e rupturas como dinâmicas de metamorfose. Temos o hábito de acreditar que sujeitos são entidades dotadas de personalidade estável e desenvolvimento linear.

No entanto, eles são entidades relacionais que agem de forma radicalmente distinta quando postos em situações diferentes. Eles não acumulam experiências, mas se movem em espaços distintos assumindo padrões de comportamentos diferentes. Nesse sentido, quebras e rupturas são estratégias de suspensão de repetições que estruturam segmentos de vida durante certo tempo e que precisarão se esgotar.

Não há vida sem quebras, como dizia F. Scott Fitzgerald, para quem: “A vida é toda um processo de demolição. Existem golpes que vêm de dentro, que só se sentem quando é demasiado tarde para fazer seja o que for, e é quando nos apercebemos definitivamente de que em certa medida nunca mais seremos os mesmos”.

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