11:05Burocracia

por Fernando Muniz 

O atendente verifica mais uma vez as informações no computador. “É, pelo que diz aqui, o seu benefício foi cancelado em definitivo”.

“Como?! Mas eu não me curei do pulmão ainda, moço. Preciso ficar encostado mais um tempo. Pode ver aí, eu tenho vindo todo mês me consultar com o doutor”.

“É… Manoel Firmino de Jesus, filho de Eufrazina Firmino de Jesus e pai desconhecido. Morto em 19/09/2016, quadro de insuficiência respiratória crônica. Atestado número 0001230074592”.

Manoel coça a carapinha, sente uma fraqueza nas pernas e se apoia no balcão. “Morto, eu?! Mas meu senhor, olha eu aqui!”. Põe o braço nos ombros do filho, que o acompanha naquela nova tentativa restabelecer o benefício da Previdência Social.

“Quer cópia do atestado de óbito?”. O atendente faz a pergunta com um quê de sarcasmo. O coração de Manoel dispara. Como seria bom ter uma cadeira por perto. “Em nosso sistema é isso o que consta, meu senhor. Óbito. Morte, fim da linha, sabe?”.

Os outros na fila começam a olhar fixo para ele. Inclusive o seu filho. “Pai, como assim, você tá morto?! Eu virei órfão e mamãe ficou viúva?!”. Começa um burburinho no posto.

“Para com isso, filho! Que maluquice!”. Vira-se para o atendente. “Moço, olha só, imprime aí esse resultado. Por favor”. Ele atende a solicitação, um tanto aborrecido com a insistência e com a voz esganiçada de Manoel.

“Venha filho, vamos à delegacia”.

O que adiantou pouco, por não ser possível alguém dado como morto fazer solicitações, muito menos registrar uma ocorrência. O escrivão de polícia encolhe os ombros, impotente: “Meu senhor, compreendo a sua situação, mas tente compreender a minha: como vou tomar o depoimento de alguém que já morreu?”.

Examina Manoel e suas roupas puídas, embora limpas e seu filho, assustado com tudo aquilo. Mira a porta do gabinete. “Sem chance, ok?”.

No caminho para casa, pensa no que vai fazer da vida. Abre a porta e o filho corre para o quarto, sem dizer boa noite.

A esposa estranha a movimentação. “O que aconteceu, Manéu?”

“Maria, estou morto faz dois anos”.

A notícia se espalha pela rua. Começam a espiá-lo pelos fundos da casa, por trás do muro. Cochicham ao vê-lo. Querem tirar fotografia. Manoel, que nunca foi popular, torna-se o assunto do dia. De todos os dias.

“Olha lá o morto!”

“Cruz credo, bem que poderia arrumar uma roupa melhor, né não? Quem que enterra alguém assim, com esses molambos?”

“É mesmo. A mulher e os filhos não deviam gostar dele. Coitado”.

“Coitado nada. Coisa ruim. Tão ruim que devolveram”.

Na mercearia cortam o seu crédito. Só à vista, em dinheiro. Vivo. Fica desesperado. Sua oficina de marcenaria, no fundo de casa, cai em silêncio profundo. Ninguém mais quer contratá-lo.

Resolve tomar uma atitude. Chega de madrugada ao posto da Previdência Social; quer ser o primeiro da fila. Quem chega depois sente arrepio ao vê-lo, ainda mais antes de o sol nascer. Mas ele não se abala. Está em uma missão.

“Olha só, já lhe disse que não posso fazer nada”. O atendente, magricelo, começa a suar frio. Procura o segurança.

Manoel sobe o tom de voz. “Não adianta ir atrás de ajuda, não mesmo. Vou ficar aqui até o senhor corrigir o que está errado aí no seu computador!” Bate as duas mãos no balcão. “E quero ver que polícia vai ser macho para prender um defunto!”.

“Acalme-se, por favor. Essa agitação faz mal aos nervos”. Manoel solta uma gargalhada. “Preocupado com a minha saúde? Mas eu não estou morto?!” Ninguém ousa confrontá-lo. Por sinal, o próximo da fila, precavido, está a uns dez passos dele, junto à porta.

“Meu senhor, seja razoável”. O atendente, dominado por um tique nervoso, esfrega as mãos, a ponto de deixá-las vermelhas.

“Razoável? Sou um morto que caminha pelas ruas e tira fotografias com gente que nunca vi na vida!”. Manoel pensa em pular para dentro do balcão. O atendente percebe, arregala os olhos e solta um gritinho, um chilique burocrático.

Manoel gruda as mãos no pescoço do atendente. “Moço, agora é a sua vez de ser razoável. Só saio daqui ressuscitado!”.

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